Artistas dançam contra 'afogamento de rio' no Mato Grosso
Com foco em arte, território e memória, iniciativa propõe espetáculo sobre o impacto da Usina de Manso; direção é de Oz Ferreira
5 MAI 2025 • POR TERO QUEIROZ • 14h56
"Estarmos nos reunindo para dançar é um ato de rebeldia". A afirmação contundente de Oz Ferreira, artista, diretora e idealizadora do projeto Derrame – Danças de Muitos Rios, traduz o espírito de uma obra que atravessa territórios, corpos e feridas abertas pela construção da Usina Hidrelétrica de Manso, inaugurada em 2000 no Rio Manso, principal afluente do Rio Cuiabá, responsável por mudanças no ecossistema do Rio Cuiabá e do Pantanal, incluindo alterações na fauna, flora e no regime das águas. Em 2022, foi multada pela Sema-MT por mortandade de peixes.
Agora, o projeto Derrame entra em uma nova etapa, com foco na criação do espetáculo Entre as memórias de um rio que morreu afogado e a marcha dos prédios iluminados, conectando arte, ancestralidade e resistência.
Em suas etapas anteriores, o projeto contou com a presença marcante de nomes como Ailton Krenak e Francisca Dias Lessa, que participaram de rodas de conversa mobilizando sonhos, memórias coletivas e corporeidades em diálogo com o território e suas águas.
Financiado pela Lei Paulo Gustavo (Edital Viver Cultura – Identidades, da SECEL-MT), o projeto se ancora em três ciclos criativos que se desdobram em experiências formativas, vivências em comunidades e construção coletiva da cena. O território escolhido é Chapada dos Guimarães, especialmente a comunidade Barra do Bom Jardim e o espaço cultural CAFUA, na Aldeia Velha.
Entre os artistas envolvidos estão nomes como Francisca Dias Lessa, Joana Dias Lessa, Sofia de Alvarenga, Lucas Alvarenga, Caboco da Maré e outros criadores com forte ligação a coletivos culturais e territórios tradicionais. A identidade visual do projeto traz a pintura inédita “Derrame”, de Thaís Magalhães, inspirada nos fluxos de água e no imaginário dos rios — a obra será projetada como parte da cenografia do espetáculo, ampliando o corpo em cena.
Em entrevista ao TeatrineTV, Oz Ferreira contou como foi a construção dramatúrgica do espetáculo e como equilibrou a dimensão poética da memória com as marcas concretas deixadas pelo impacto ambiental e social da Usina de Manso nas comunidades ribeirinhas. “É uma construção puxada por um fio muito tênue por onde alguns de nós temos nos equilibrado procurando não nos esquecer de quem somos, nos tornando uma espécie de 'zumbis'. As marcas deixadas são profundas, como uma árvore que tinha suas raízes fincadas em solo fértil e que é retirada dali, e replantada num deserto. Suas raízes cavam em busca das profundezas, sedentas pelas águas. Muitas não conseguem resistir. Perdemos muitas, de muitas formas, ao longo destes 25 anos. Então, neste processo de construção dramatúrgica, lido com muitas lacunas, com muitas idas e vindas, e com o olhar das crianças com as quais sempre trabalho para que me guiem. Porque eu era uma criança quando tudo isso nos alcançou".
Oz revelou de que maneira o corpo, enquanto arquivo vivo de experiências, é mobilizado nos ciclos formativos como ferramenta crítica e estética para narrar histórias coletivas que muitas vezes não estão registradas nos meios oficiais. “Um corpo dá coragem para o outro e todo mundo faz suas travessias. Estamos nos remendando mutuamente. Fazendo nossos rituais fúnebres e de cura, neste processo. Velando os corpos dos nossos rios, como diz Ailton Krenak. A dança, como ferramenta que brinca com a gravidade e com o sonho, acessa memórias que se escondem embaixo de nossas peles, nas dobradiças de nossos encontros, nas rachaduras de nossos pés. Nos ciclos formativos bebemos de outros potes, nos retroalimentando com técnicas trazidas por corpos que caminham por caminhos distintos ao longo da vida. Uma coisa muito corriqueira são as pessoas pensarem que nós, que viemos da terra, somos 'simples demais pra dançar'. E incrustam isso na gente. Um desafio neste processo é fazer-se reconhecer a dança que pulsa em cada um de nós. E é tão grande quando isso acontece, tão mágico. Ainda mais quando estamos dançando juntos. Estarmos nos reunindo para dançar é um ato de rebeldia".
Nesse projeto, em que cruza arte, território e ancestralidade, Oz revelou quais foram os principais desafios éticos e criativos na mediação entre práticas comunitárias e linguagem cênica contemporânea. “Um desafio criativo para mim é me relembrar constantemente que a linguagem cênica contemporânea é também tudo aquilo que fazemos. Estamos inseridos na contemporaneidade com tudo aquilo que somos e que trazemos. Quero que sejamos aceitos. Alguns desafios éticos perpassam a longa história que este projeto tem, de pesquisa e desenvolvimento, até chegarmos enfim ao processo de construção dramatúrgica e coreográfica. Desmembrei todo o processo porque não queria falar da boca pra fora. Esperei há muito tempo para dançar essa história. Porque, quando decidi que queria falar das memórias de um rio que morreu afogado, há mais de uma década, eu decidi que não faria isso sozinha. Eu queria falar junto, dançar junto. E isso demanda tempo, recursos, idas e vindas. Falar sobre a importância da memória é sempre um desafio. O progresso (tal como ele é, nu e cru), nos prefere esquecidos, perdidos e aceitando qualquer coisa".
A diretora mato-grossense apontou que a o papel da arte como instrumento de resistência e contra-narrativa frente aos processos de urbanização e apagamento de memórias. “Tenho a memória vivida de alguns sonhos. Numa noite, num desses sonhos, subi no pé de siriguela que havia no terreiro de minha avó lá na comunidade. Lá de cima, avistei com terror a marcha de uma cidade em nossa direção. Ela vinha caminhando pesadamente em cima da Serra do Pingador. Assustada, caí. Acordei. A nova vida que nos foi imposta já nos rodeava por todos os lados. De dentro pra fora, pensei, e dançando, é que temos que lutar pela preservação de nossas memórias, e as memórias de nossos rios (sic)”.
3 CICLOS FORMATIVOS
A obra se constrói a partir de três ciclos criativos que entrelaçam dança, dramaturgia e tecnologia cênica:
- Costurando Águas – Dramaturgias do Corpo em Dança (maio a outubro), na comunidade Barra do Bom Jardim;
- Pingador de Memórias – Nascente Coreográfica (2 e 3 de maio), no espaço cultural CAFUA, com Ricardo Januário e Bel Araújo;
- Corpo-Projeção – Memórias em Superfície Cênica (21 e 22 de junho), também na CAFUA, com Fagner Lourenço.
Dez artistas residentes já estão confirmados, e o projeto ainda oferece 10 bolsas formativas não remuneradas para artistas mato-grossenses que desejem participar dos processos de criação.
As inscrições para as bolsas formativas seguem abertas via WhatsApp: (65) 99250-3966.
FICHA TÉCNICA
- Direção, dramaturgia e produção executiva: Oz Ferreira
- Artistas orientadores: Ricardo Januário, Bel Araújo e Fagner Lourenço
- Artistas-residentes (convidados):
- Joana Dias Lessa, Francisca Dias Lessa, Anastácia de Alvarenga (Dona Sofia), Laura de Alvarenga, Lucas Alvarenga, Lourença Nascimento, Lara Alves, Tatiana Reis, Amanda Crysty e Caboco da Maré
- Produtoras locais: Tatiana Reis e Lourença Nascimento
- Artista visual: Thaís Magalhães
- Projeto gráfico e assistente de produção: Abna Dhaya
SERVIÇO
Onde: Chapada dos Guimarães – MT
Quando: Programação: até dezembro de 2025
Inscrições: WhatsApp (65) 99250-3966