"Estamos aqui por causa de 50 anos de luta do movimento negro", afirma Hilton Cobra
Ator e diretor apresentou "Traga-me a Cabeça de Lima Barreto", da Cia. Dos Comuns, em Campo Grande (MS)
10 MAI 2025 • POR TERO QUEIROZ • 18h04
“Existe um espaço muito mais dilatado, muito mais ampliado, muito por conta de que temos no Brasil o movimento negro, nessas cinco décadas para cá, lutando para que a presença preta estivesse no audiovisual, nas artes plásticas, no teatro, nas artes cênicas. Sem o movimento negro, nessas cinco décadas, nós não estaríamos tanto ali dentro da TV aberta”, disse o ator e diretor Hilton Cobra em entrevista exclusiva ao TeatrineTV, no seu camarim no Sesc Teatro Prosa, na 6ª feira (9.mai.25), após apresentar o espetáculo “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto”, da Cia. Dos Comuns (RJ), em Campo Grande (MS).

Para o artista, a visibilidade que hoje alcançam atores e atrizes negros nas telas e nos palcos é resultado direto de uma trajetória histórica de luta. “Não adianta pensar que tá lá fazendo sucesso por conta do seu puro talento. Não. Tá ali dentro porque teve o movimento, porque teve uma política, porque tivemos um monte de gente estendendo a mão para poder fazer, abrir espaço para gente estar ocupando”, acrescentou.
A conquista por espaço dos artistas negros, para Cobra, diversificou a qualidade das interpretações. "Tantos atores e atrizes extraordinárias que estavam ali mofando, agora estão mostrando seu talento. Quanta coisa renovada dentro da televisão brasileira, do cinema brasileiro é por conta da presença dos atores, dos artistas, atrizes negras que não podiam, não tinham espaço, não tinha oportunidade para poder apresentar os seus trabalhos", afirmou.

Com invejáveis 4 décadas de sucesso ininterruptos, no teatro e televisão, Cobra rememorou sua trajetória disse que o tempo trouxe consciência e responsabilidade. “Você me pergunta o que é 46 anos. Aí eu acho que é, é tempo. É experiência de fato, é trajetória. É lidar com tanta gente maravilhosa desse teatro brasileiro, desde quando eu comecei a fazer na Bahia. O Luiz Marfuz, que é o autor desse texto, que me apresentou à arte, me apresentou ao teatro, e de lá para cá eu tô sempre ligado ao teatro”, declarou.
TRAGA-ME A CABEÇA DE LIMA BARRETO

A montagem em que Cobra interpreta Lima Barreto não é um mero resgate da biografia de um autor marginalizado pela história oficial.
A peça encarna as camadas simbólicas de uma militância racial, política e estética, com um humor ácido do texto de Marfuz e uma direção de alto resultado de Onisajé (Fernanda Júlia).
Os elementos de iluminação, interação com o público e poucos objetos de cena — uma cadeira, uma espécie de 'bacia' e um luminária/cabaça no formato de cérebro — permite que Cobra sobressaia com sua performance de atuação, promovendo um resultado impressionante no corpo, voz, musicalidade, ritmo e movimentações. É assim que ele conduz o público de maneira leve e irônica por uma sessão imaginária de autópsia na cabeça do escritor Lima Barreto, realizada por um Congresso de Eugenistas no Brasil, no início do século XX.

Na trama, após a morte de Lima Barreto, os médicos eugenistas — nome científico para racistas no século passado — determinam a exumação do corpo, a fim de responder à seguinte pergunta: “Como um cérebro, considerado inferior pelos eugenistas da época, poderia ter produzido e publicado obras literárias de qualidade, se a arte nobre e da boa escrita deveria ser um privilégio das raças consideradas superiores?”.
A partir desse embate, a peça mostra as várias facetas da personalidade e da genialidade de Lima Barreto, refletindo sobre loucura, racismo e eugenia. “Trazer Lima Barreto também tem uma coisa, também é toda uma questão de movimento negro, das lutas antirracistas e etc. E o Lima Barreto é, por demais importante, nada melhor do que você trazer uma vivência de uma trajetória de militância, de uma trajetória de militância no sentido da questão racial e também da militância, também nas artes, no teatro. E você encarnar tudo isso para que o Lima Barreto possa, através dele, a gente falar tudo isso, mostrar tudo isso. Nós estamos falando sobre o maior escritor negro da nossa história”.

Completa a equipe do espetáculo Vila de Taipa (Erick Saboya, Igor Liberato e Márcio Meireles), assinando o cenário, o desenho de luz é de Jorginho de Carvalho e Valmyr Ferreira, o figurino Biza Vianna, a direção de movimentos Zebrinha, a direção musical Jarbas Bittencourt e a direção de vídeo David Aynan.
A LUTA É CONTÍNUA

Para Cobra, desde meados do século XX há um esforço contínuo por representação negra verdadeira — não apenas pela presença, mas pela ressignificação do que é ser negro em cena. “Eu acredito que da década de 1940 para cá, a gente tem uma luta ininterrupta, um trabalho ininterrupto para trazer, fundamentalmente, a vida da gente negra brasileira para os palcos. E não é simplesmente botar a vida da gente no palco, é ressignificar como a arte é. A arte ressignifica a vida e bota no palco”.
O artista também comentou sobre como lida, em cena, com o sofrimento que muitas vezes é imposto ao corpo negro. “Através da performance, o sofrimento é revirado em crítica e provocação”, respondeu, sucinto.

Mesmo com o reconhecimento em grandes produções e plataformas, Cobra apontou a que papéis para homens negros com mais de 60 anos é uma luta que está sendo travada com o mercado. “Existe um espaço muito mais dilatado, muito mais ampliado [...] mas agora, não pode parar”.
HILTON COBRA EM CAMPO GRANDE

Ao ser questionado sobre sua avaliação diante do público de Campo Grande, Hilton citou uma frase do diretor Ulysses Cruz, sintetizando o que é, para ele, o verdadeiro encontro teatral: “Ele costuma dizer que o teatro se estabelece quando sai faísca entre o público e o palco. Sempre sai faísca com Lima Barreto. Com esse público, Campo Grande não nos decepcionou. A faísca estava lá o tempo inteiro”, concluiu.
Veja a galeria com imagens da apresentação e da recepção de Hilton Cobra ao público após o espetáculo. (Clique nas fotos para ampliar e visualizar em tela cheia):