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ARTIGO

Pretos na tela? Só se forem Instagramáveis

21 NOV 2025 • POR ROLLO* • 20h29
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Se o novo padrão de inclusão é ter melanina sob medida, expressão treinada, barriga trincada e discurso higienizado, talvez seja hora de parar de chamar isso de "representatividade" e dar o nome certo: curadoria estética da negritude
*Este artigo foi publicado originalmete no site O Cafezinho

O Audiovisual brasileiro finalmente abriu as portas para a negritude. Mas, calma lá: só entra se for preto padrão, com abdômen trincado, sorriso Colgate e o tipo de nariz que cabe num close sem “assustar” a audiência. Atrizes e atores negros até viraram tendência — desde que venham com manual de estética aprovado por agência de publicidade e filtro de Instagram. É o avanço que parece inclusão, mas só se move com Wi-Fi, lace frontal e barriga negativa. A pergunta é: até quando a representatividade vai continuar de coleira?

Inclusão com Manual de Instrução: Só entra se for Preto Instagramável™ (porque a melanina tem que vir com harmonização facial e tanquinho aprovado pela Anvisa). O Audiovisual brasileiro — essa salada de novela, cinema, série de streaming, clipe publicitário, institucional de banco e TikTok com verba — finalmente percebeu: preto existe! Aleluia! Uma epifania tardia, mas enfim revelada. Depois de décadas empurrando a gente para o papel de escravo número 4, da empregada muda que só abana a cabeça ou do bandido que morre no segundo ato, agora os pretos estão na frente das câmeras. Estão nas novelas, nos filmes, nas séries. Até nos telejornais, olha que avanço!

Mas, como estamos na Semana da Paciência Negra™, vale lembrar: até quando o protagonismo negro vem com manual de uso? A recente polêmica envolvendo Taís Araújo e a autora de Vale Tudo mostra exatamente isso. Um núcleo negro inteiro, um feito histórico na teledramaturgia — mas, na reta final, a personagem principal, Raquel, vai ficando pra escanteio. Não é briga, é constatação. E Thaís tem razão de se incomodar: quando a representatividade finalmente chega, alguém logo tenta colocá-la em segundo plano, como se a presença já fosse favor suficiente. A ironia? Querem que a atriz sorria, agradeça e continue “grata pela oportunidade” — como se a luta por espaço fosse vaidade, e não sobrevivência.

Mas calma lá. Nem todo preto é bem-vindo. Existe o preto ideal. O preto padrão. O preto palatável. O preto que passa no scanner do algoritmo. Porque, agora que “descobriram” os artistas negros, fizeram questão de criar uma nova categoria: o Preto Instagramável™. Sim, com selo azul, filtro Paris e corpo esculpido por deuses da Old Spice.

Quer participar do casting? Anota aí os pré-requisitos do “Negro Palatável S/A”

— Para os rapazes: seja jovem (nada de DRT com rugas — isso, se tiver!), bonito (mas não retinto demais, por favor!), nariz afilado ou, no máximo, um “batatinha simpático”, peitoral definido, braço de crossfit, barriga negativa e... sim, pauzão. Porque, caso role cena na piscina, o “figurino” tem que preencher o speedo. Afinal, ninguém quer constrangimento na lente 50mm.

— Para as meninas: cabelo natural (desde que perfeitamente finalizado, com cachos tipo comercial de xampu), peitinhos empinados, barriga seca, bumbum no grau (nem pequeno, nem grande demais, senão vira “oversexualização”), “sorriso Colgate” e, de preferência, sem história demais na cara. Ninguém quer uma atriz com expressão de quem viveu, né?

Pretos velhos? Só se for em terreiro!

Ah! E a idade? Se você tem mais de 30 anos, só entra se for para fazer a mãe do protagonista — de preferência, interpretada por uma colega com dois anos a mais que ele. Passou dos 40? Avisa o streaming que é melhor você abrir uma ONG. A diversidade chegou, sim. Mas chegou maquiada, filtrada e com biotipo de passarela da Fashion Week. Não me entenda mal: é ótimo ver mais pretos na tela. O problema é quando essa representatividade vira vitrine de shopping. É o preto-exposição, o preto-objeto, o preto que não incomoda, não denuncia, não subverte. O preto que entra na sala branca desde que limpe os pés e fale baixinho. Inclusive, até no jornalismo, a estética virou filtro de credibilidade. Tragédia na favela? Enchente, tiroteio, chacina ou apagão? Chama alguém para entrevistar que seja preta, de cabelo modelado e voz mansa. E o povo real — aquele que grita, que chora, que perde o que tem? Esse vira paisagem borrada no fundo.

A Publicidade Descobriu a Negritude — E Já Colocou Pra Trabalhar Como Vitrine

É o mesmo princípio da publi. A publicidade já domina essa técnica há anos: “Se é pra ter preto, que seja bonito e gostoso”. A régua é estética, não ética. A inclusão é de fachada — e, se o preto em questão não vier com tanquinho ou lace frontal, pode esquecer o job. Vai tomar bolada na cara, tropeçar na casca de banana ou, no máximo, ser escalado pra acertar um sorvete na própria testa. Você acha que tô exagerando? Assista ao comercial da Betano e tire suas conclusões: Representatividade sem criticidade é igual pastel de vento — faz volume, mas não sustenta. O mercado quer diversidade com manual de instrução. Gente preta que “fotografa bem”, que tem “história interessante”, mas não pode ser demais. Não pode ter cicatriz, não pode ter 50 ou 60+ (daí me incluo nessa!), não pode ter corpo real, nem voz que denuncia. Ou seja: você pode ser preto, desde que não pareça com a sua avó, que é neta de escravizados. Desde que não lembre o porteiro do prédio que, ao final do expediente, embarca no trem da Central até Saracuruna ou além. Desde que não traga o peso da ancestralidade, da luta, da resistência.

Quem escala preto retinto é o algoritmo — e ele tem TOC de padrão

 A negritude vendável é a que cabe em 15 segundos de Reels, com música da Beyoncé da vez e sorriso de escova progressiva. "O negro não é representado. Ele é autorizado a aparecer, desde que não confronte." A frase ecoa Fanon — e continua atual como nunca. Porque o que se vende como representatividade, muitas vezes é só permissão para existir de forma inofensiva. Desde que não incomode. Desde que não questione. Desde que não se pareça com você. E nem adianta achar que, se você for pardo ou preto de pele clara, o caminho está garantido. Spoiler: também não está. Porque, nesse mercado, até a miscigenação tem que vir com pedigree. Se você não é retinto o suficiente pra preencher a cota exótica (lábios carnudos, olhos arregalados, bom de caretas) e  nem claro o bastante pra passar por “universal”, cai no limbo do “nem lá, nem cá” — o famoso purgatório do casting. É a seletividade dentro da seletividade: ou você performa o estereótipo ou vira paisagem. Pardo sem curva de definição e mestiço sem narrativa de dor não entra nem pra fazer figuração com lanche incluso.

Então, bora refletir com veneno?

Onde estão os pretos gordos? Onde estão os pretos com deficiência? Onde estão os pretos com 60, 70 anos de história, rugas e talento? Onde estão os retintos de cabelo duro, de voz grave, de nariz largo e que não cabem em filtro? A resposta é simples: no mundo real. Só não estão na tela porque não passaram no RH do algoritmo.

Resumo da ópera em três atos

I. O audiovisual “abraçou” a diversidade — mas com régua e compasso.

II. A publicidade vende inclusão — mas exige que o modelo venha com abdômen trincado e sorriso Photoshop.

III. O jornalismo dá voz ao povo — desde que a voz seja bonita e a pessoa, minimamente dentro do padrão da dermatologia do Leblon.

Se você ousa destoar do script, vira cenário. Ou legenda. Ou nem aparece — é cortado na ilha de edição. Ou excluído do PDF do projeto, mesmo com “diversidade” no título. E, quando você reclama, ainda ouve: — “Ah, mas você já não tá trabalhando? Tem que agradecer!” Agradecer, meu bem? A gente não quer gratidão. Quer reparação, oportunidade de verdade — e não um lugar no rodapé da ficha técnica com “participação especial”.

Então vamos combinar: se o novo padrão de inclusão é ter melanina sob medida, expressão treinada, barriga trincada e discurso higienizado, talvez seja hora de parar de chamar isso de “representatividade” e dar o nome certo: curadoria estética da negritude™. Porque o que a indústria quer mesmo é o close, não o contexto. Quer a imagem, não o incômodo. Quer a presença do preto — contanto que ele não seja espelho, só vitrine. E o mais perverso? É que a maquiagem da diversidade é aplicada com tanto cuidado que até parece afeto. Mas é controle. É filtro. É silenciamento gourmetizado. Por isso, se você ainda tá achando que aparecer na tela é sinônimo de avanço, sinto muito: você confundiu cenário com protagonismo.

A real é simples (e dolorida): nem toda aparição é liberdade. Tem corpo negro na tela sendo usado como selo de consciência, como token progressista, como item de impacto visual no feed da marca — e tudo isso sem nunca poder gritar sua própria história em voz alta. Porque o sistema ama a estética da resistência, mas detesta a potência de quem resiste. Ama o visual do quilombo, mas odeia quando alguém se recusa a ser decorativo.

Então se esse texto te irrita, se te atravessa, se te dá aquele incômodo no estômago... não desvia não. Isso é bom sinal. Sinal de que tem algo aí dentro que ainda não foi anestesiado por publi, não foi domado por algoritmo, não foi embranquecido por elogio disfarçado. Porque arte de verdade não serve só pra ser fofa, neutra, ndigerível. Serve também pra provocar, esculachar, escancarar. E se no final disso tudo você ainda tiver coragem de dizer “mas pelo menos estão chamando a gente”… então parabéns. Você já virou figurante no roteiro dos outros.

Rollo é ator profissional | Foto: DivulgaçãoO ator Rollo | Foto: Divulgação
*Rollo é ator profissional e ex-integrante do Conselho Estadual de Política Cultural do RJ na cadeira do Audiovisual. Atualmente, integra o elenco do espetáculo teatral “O Bem Amado”, de Dias Gomes, ao lado de Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi.