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ARTIGO

O ócio como resistência cultural

Ou como a industrialização nos tornou passivos

3 DEZ 2025 • POR EDVALDO QUARESMA NETO* • 15h01
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Pôr do sol na Cidade das Mangueiras | Foto: Edvaldo Quaresma Neto (Arquivo)

Em uma tarde comum de trabalho – sendo lojista no shopping. Ao sair tomei um choque, estava quente (o leitor mais atento pode pensar:” qual a surpresa de estar quente em Belém do Pará?”, mas depois de 8 horas com arcondicionados e luzes anulando o ambiente exterior até isso parece uma novidade). Andando a pé com a bicicleta na calçada, estava na contramão, ao virar a rua e entrar em uma avenida mais ampla tive um espanto: o céu estava especialmente bonito, era por volta de 17h30 e o sol começava a se pôr, mas ainda se fazia intenso, o reflexo da baia do Guajará, aquele rio de amarelado, parecia estar ali, trazendo um tom único ao céu da cidade.

Na avenida os carros passavam, como que distraídos em um dia completamente comum. Por alguns breves segundos simplesmente fui tomado pela contemplação do céu amarelo belenense. O que me fez parar, tirar o celular do bolso e fazer uma fotografia – que talvez represente muito mais um sentimento à um momento belo objetivamente. Depois disso refleti como não temos mais um momento de ócio e como isso prejudica a nossa relação com a arte (no meu caso, a fotografia).

Há uma perda da sensibilidade artística, da contemplação do simplório e do banal. No lugar disso, para ocupar esse espaço, a indústria cultural fornece todas as possibilidades: dezenas de plataformas de filmes e séries diferentes, outra plataforma com toda a sorte de música, e até os livros, parecem ter sido coaptados, transformando-se em produto. De maneira geral, toda a cultura é feita para ser consumida, como quando compramos um fast-food – um estímulo imediato.

Parafraseando Russell, vivemos para o “culto da eficiência”, onde instrumentalizamos o nosso tempo em detrimento de um possível desenvolvimento material que, embora pareça ter data e local para acontecer nunca “chegamos lá”. O resultado imediato é que os nossos dias se tornaram ocupados e com metas rigorosas de desempenho. E os poucos momentos que temos livres somos facilmente fisgados para a tela do celular, ora descobrindo novos desejos e objetivos de vida através de um vídeo de poucos segundos. Onde antes estava o ócio agora está o estímulo.

O problema fundamental de excesso de informação é que ficamos com menos tempo disponíveis e o tempo que nos sobra distribuímos para atividades cada vez mais passivas, como scroll infinito das redes sociais. Cada vez menos dedicamos a hobbies como pintar, desenhar, escrever. Em síntese, o pouco tempo livre que nos sobra é doado ao consumo da informação, e, portanto, não nos "recarrega”, mas costumeiramente nos sentimos até mais cansados. Não é difícil concluir daí o resultado econômico em transformar pessoas em consumidoras ambulantes, que são bombardeadas pela propaganda e que, por sua vez, compram mais.

Como Adorno observou em sua viagem ao Estados Unidos na década de 40 do século passado, as pessoas acreditavam sinceramente estar cada vez mais livres, ao mesmo tempo em que o rádio e o cinema hollywoodiano ditavam tendências e influenciavam massivamente o consumo, e, portanto, a opinião geral – o que será que ele pensaria ao ver as redes sociais?

Essa lógica de padronização não desapareceu, pelo contrário, se intensificou, em questões ainda mais corriqueiras. Considero pertinente o fato que hoje é possível comprar camisetas de bandas de heavy metal e artistas de hiphop em lojas de departamentos e fast-fashion, isto é, o estilo que nasceu como contracultural, e que cresceu em pequenos grupos, com lojas específicas que vendiam apenas os produtos vinculados aquela cultura, e que por esse motivo, eram necessariamente movimentos fora do mainstream que carregam não apenas um modo de se vestir, mas, em primeiro lugar, pressupunha um modo de pensar e encarar a realidade, de agir a partir daí vestir-se como um modo de identificação grupal.

Agora, entretanto, estão disponíveis para um público através da lógica do consumo, em outras palavras, esse processo não decorre de uma identificação natural com aquela cultura na medida em que é oposição a um determinado padrão (por exemplo musical ou estilo de se vestir), mas um produto personificado em estilos. Hoje qualquer um de nós pode mudar de estilo ou de identidade, desde que compremos um pacote de itens específicos coaptados de uma cultura que antes era contrária a essa dominação cultural em primeiro lugar.

O movimento contrário a isso, não instrumentalizar a arte, é a relação, em primeiro lugar, com o ócio. Por quê? Porque o ócio, na definição de Bertrand Russell enquanto um “não fazer deliberado”, não é a mente desconcentrada e hiper estimulada por informações, mas o contrário disto, a contemplação, um ócio despreocupado, que nos prepara para conhecimentos “inúteis” (por exemplo, qual a origem do seu nome? O que ele significa?), conhecimentos que não são instrumentalizados pelo culto a eficiência.

Esse tipo de ação nos torna mais propício ao relaxamento contente que por sua vez, tende a nos inspirar a produzir arte pura, sem significado comercial, mas com valor subjetivo individual que se relaciona com o nosso Eu e com a maneira que vemos o mundo em nossa volta.

Como gesto humano, ócio não pode ser confundido como preguiça, pois é uma parte inerente do desenvolvimento da nossa psique, como principal exemplo, é o desenvolvimento infantil, com a simples inquietação de tentar descobrir por quê o céu é azul. Contudo, em uma sociedade da produtividade, defender o ócio pode parecer antiquado, contracultural. Mas o que trago aqui é uma defesa humana, uma defesa a favor da recuperação da nossa humanidade. E que poderia ser dito como uma cura aos “males do espírito” como filósofos do passado costumavam dizer. Essa contemplação, levará, a diminuição do ritmo de consumo, que por sua vez, diminui a passividade e aumenta a criatividade individual, permitindo que nos relacionemos com nós mesmos aprendendo no caminho. 

Talvez, isso possa soar como as utopias românticas, pois recuperar esse controle pode parecer distante nesse momento. Contudo, resistir ao ritmo pode ser mais fácil do que pensamos, como aquele breve segundo que observamos o céu amarelado. Devemos apenas permitir retomar aquilo que é humano, a respiração, o silêncio entre as palavras. Pois é precisamente no espaço vazio entre as notas que se cria uma bela sinfonia.

Foto: Edvaldo Quaresma NetoFoto: Edvaldo Quaresma Neto (Arquivo)
*Historiador de formação, colunista por impulsão. Formado pela Universidade da Amazônia, Edvaldo transita entre cultura, história das ideias e a natureza humana. Seu foco é a relação do sujeito com o meio social e nos modos que ele se expressa. Crítico analítico – com uma pitada de Ironia.