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DO BRASIL À ESPANHA

Bailarina de MS cruza o oceano para criar solo inspirado por Milton Nascimento

Residência artística internacional promove intercâmbio cultural por meio da dança, da música e técnica de improviso

Por TERO QUEIROZ • 29/05/2025 • 10:52
Imagem principal Nathalia guia Luiza Rosa pelo caminho do fluxo em pesquisa de solo na técnica de improvisação. Fotos: Derek Pedrós

As bailarinas Luiza Rosa e Nathalia Pettengill Fernandes realizaram uma residência artística entre os dias 1º e 22 de abril de 2025 no município de Sotillo de La Andrada, na Espanha.

Conforme elas explicaram, o encontro do outro lado do Oceano Atlântico faz parte do processo de criação de um solo de dança inspirado na música “Quem sabe isso quer dizer amor”, de autoria partilhada entre Milton Nascimento, Lô e Márcio Borges.

Segundo a proponente do solo, o trabalho germinou logo após o período de Covid-19, impulsionado pela metodologia de improvisação de Nathalia, que oferecia aulas de dança contemporânea focadas em como realizar oposição entre duas partes do corpo, como performar um fluxo de vento, brincando com a densidade do ar e com o fluxo liberado dos movimentos, entre outras estratégias.

Luiza Rosa é bailarina, jornalista e pesquisadora. Tem formação técnica em ballet clássico e experiência com grupos como Ginga Cia. de Dança e Coletivo Corpomancia. Foto: ReproduçãoLuiza Rosa é bailarina, jornalista e pesquisadora. Foto: Derek Pedrós

"Foram as aulas que a Nathalia ofereceu na sala de dança que fica na casa da mãe dela, Maria Helena Pettengill, em 2023 [em Campo Grande - MS]. Além de eu ter sentido que a forma como a Nathalia propunha as improvisações estimulava a minha criatividade e me permitia me sentir à vontade com minha forma de interpretar os movimentos, me identifiquei com a sensibilidade dela e a importância que ela dava para encontrar algo de genuíno naquilo que estávamos fazendo", introduziu Luiza, que é formada em ballet clássico em cursos livres em São Paulo e Mato Grosso do Sul e ex-integrante da Ginga Cia. de Dança (2004 a 2007).

Ao longo das aulas, Luiza percebeu que sua sensibilidade era aflorada principalmente quando se deparava com músicas. Uma delas foi a “Quem sabe isso quer dizer amor”, de Milton Nascimento. "Que é um artista que admiro por fazer aflorar em suas canções emoções genuínas, simples e profundas", apontou.

Os trabalhos foram desenvolvidos no Estudio de Danza Virginia Ruíz. Foto: Reprodução Os trabalhos foram desenvolvidos no Estudio de Danza Virginia Ruíz. Foto: Derek Pedrós

Ela disse que ficou tão tocada com as imagens geradas pela letra e pelas tensões entre as duas pessoas envolvidas na música — uma que é quem narra tudo o que está acontecendo, e outra, que é a pessoa amada pelo narrador. "Que passei a refletir sobre aquela situação gerada pela letra. Que lindo é ver uma pessoa incentivando a outra a transcender barreiras através do encontro de uma força de vida que reside em todos os seres. Acho que só o amor consegue proporcionar isso. E esse sentido eu extraí, principalmente do trecho: ‘mas se você quiser transformar o ribeirão em braço de mar, você vai ter que encontrar aonde nasce a fonte do ser’", lembrou.

Mas não só a técnica aproximou as bailarinas. "Confiança mútua. Valores que partilhamos como respeito, integridade, sinceridade", enumerou Luiza ao citar por que Nathalia se fez crucial no trabalho, além de a professora também ser campo-grandense.

DE CG PARA SOTILLO

Luiza constrói solo de dança na Espanha. Foto: Derek Pedrós

São 8.505 km entre Campo Grande e Sotillo de la Adrada. Luiza revelou como não só a distância, mas as diferenças culturais e climáticas impactaram na composição de seu solo. "Sinto que deslocar-me para outro país, falar outro idioma, lidar com uma cultura diferente, me ajudam a entrar em contato com a minha essência. Esse trânsito faz com que eu transcenda condicionamentos sociais que restringem minha expressividade", avaliou.

O município da Espanha fica na província de Ávila, comunidade autônoma de Castela e Leão, e tem apenas 108 habitantes por quilômetro quadrado (pouco mais de 4,2 mil pessoas). A cidade, conforme a bailarina de MS, proporcionou momentos inesquecíveis para sua composição. "Tivemos a sorte de realizar a residência em um povoado pequeno da Espanha, rodeado por montanhas. Uma paisagem belíssima. Houve momentos em que eu ia até as montanhas para observar o horizonte e, também, um pequeno riacho. Observando o riacho, especificamente, buscava compreender a totalidade do fluxo liberado e me dei conta de que as pedras representavam pequenos impedimentos, que retinham o fluxo liberado, proporcionando desenhos ondulados e também um marulhar muito propício ao relaxamento. Quando me movimentava no estúdio, essas imagens contribuíam para que eu me percebesse enquanto fluxo, com a peculiaridade humana de ter uma estrutura óssea que espirala e que, por isso, permite que o fluxo encontre caminhos para continuar", disse Luiza.

Para Nathalia, deslocar-se foi essencial para o projeto. "Foi uma ótima experiência. Sotillo é uma cidade muito tranquila e cheia de natureza ao redor, isso traz uma sensação de paz e tranquilidade. Se tivéssemos trabalhado em Madrid, talvez o próprio ritmo da cidade teria nos conduzido a outro lugar".

PONTO DE PARTIDA

Professora Nathalia conduz Luiza.Professora Nathalia conduz Luiza Rosa. Foto: Derek Pedrós

Diante disso, ao conseguir tirar o projeto do papel, por meio do financiamento da Lei Paulo Gustavo — viabilizada com recursos do Ministério da Cultura (MinC) e gerida localmente pela Secretaria de Cultura e Turismo de Campo Grande (MS) — Luiza convidou Nathalia para realizarem uma residência artística com o objetivo de aprofundar as investigações em improvisação. “Mas já dentro dos parâmetros da letra da música do Milton”, destacou.

Assim, o processo criativo foi guiado pela música, enquanto o caminho para a construção de um solo de dança foi sendo delineado a partir da metodologia proposta por Nathalia. “Uma abordagem que ia possibilitando novos alcances aos movimentos, novos pontos de equilíbrio, diferentes densidades e a expressão de emoções que conferiam carga dramática à dança”, disse Luiza.

Bailarina, coreógrafa e professora de dança, Nathalia é graduada em dança clássica pelo Conservatório Real Profissional de Dança Mariemma (Madri, Espanha, 2019) e, atualmente, cursa o Grau Superior de Dança no Conservatório Superior Maria de Ávila, também em Madri, com especialização em “coreografia e interpretação”. Para ela, a voz é uma ferramenta fundamental no processo de investigação artística, capaz de conduzir o corpo a um estado quase meditativo — abordagem que guiou seu trabalho com a bailarina sul-mato-grossense. “Conduzir o movimento da Luiza exigia mais do que explorar uma pauta concreta; era necessário observar a linguagem própria do corpo dela e traduzir a proposta por meio de diferentes direções de movimento", revelou.

A professora contou que elas começavam as sessões aquecendo articulações e musculatura. "Ao mesmo tempo em que desenvolvíamos uma qualidade de movimento mais fluida, mobilizando o corpo a partir do esqueleto".

O processo de semanas permitiu a descoberta de novos caminhos, rompimento de padrões e a liberação de tensões que Nathalia disse que percebia nos gestos. "Acredito que o uso da voz foi essencial para a busca pela identidade da Luiza — queria entender como ela interpretava o que eu propunha. Muitas vezes, observar outro corpo realizando uma sequência ou improvisação pode induzir à cópia, e isso é algo que evito no meu trabalho. Cada corpo é um universo próprio e precisa ter liberdade para se expressar", comentou a professora, que aprendeu repertórios de coreógrafos reconhecidos como: Fabián Tomé, Sidi Larbi, Jiří Kylián, Chevi Muraday, Javier Guerrero e Javier Monzón.

Nathalia é campo-grandense, mas estuda na Espanha. Foto: Albiru Muriel PhotographyNathalia é campo-grandense, mas estuda na Espanha. Foto: Albiru Muriel Photography

A busca da professora foi um dos desafios de Luiza. "Buscar desestabilizar minha qualidade de movimentação mais controlada. Isso tem a ver tanto com meu temperamento, como com o método que utilizo há muitos anos para me preparar fisicamente, que é o pilates (cujo nome mais técnico é ‘contrologia’, ou seja, controle do movimento). Estabelecemos um total de 35 horas e ficava pensando se conseguiria alcançar outras qualidades de movimento nesse intervalo de tempo", anotou.

Felizmente, a bailarina de MS conseguiu alcançar o estado de fluxo mais livre em sua movimentação. “Fui entendendo que ‘menos é mais’. Menos força permitia que o fluxo se liberasse”, partilhou.

BUSCAS, DESCOBERTAS E DESAFIOS

Nathalia, Luiza e o fotógrafo Derek Pedrós durante o ensaio em um mirante no alto de uma montanha, em Sotillo de La Adrada.Nathalia, Luiza e o fotógrafo Derek Pedrós durante o ensaio em um mirante no alto de uma montanha, em Sotillo de La Adrada.

Questionada sobre como o corpo era interpretado na sua visão e da professora, Luiza disse: "Buscávamos uma energia vívida, fulgurante, que expressasse um sentido de força íntima que pode transcender barreiras. Isso porque a canção que nos inspirou propõe o amor como ‘estrada de fazer o sonho acontecer’. No atual momento do nosso processo de criação, encontramos uma movimentação fluida, que é um passo para se chegar, esperamos, à movimentação vivaz. Primeiro, desestruturação de hábitos meus – movimentos controlados. Para isso, a Nathalia propôs movimentos com o mínimo possível de tensão muscular, mais liberados e que pudessem sair do meu eixo de equilíbrio. Depois, sensibilizamos a coluna vertebral e os pequenos movimentos que ela possibilita. Em seguida, estudamos movimentos gerados a partir da soltura do peso e, depois, reverberações do movimento iniciado pelo peso da cabeça no resto do corpo".

Ainda de acordo com Luiza, a orientação de Nathalia para que seguisse mais o instinto do que a racionalização foi fundamental nesse processo. Para a bailarina, a abordagem favoreceu uma entrega mais autêntica, menos controlada, e abriu espaço para descobertas inesperadas. Uma das surpresas aconteceu durante uma das sessões da residência, quando Nathalia colocou para tocar a música Ave Maria, de Schubert, interpretada por Hannah Holgersson. Naquele momento, Luiza estudava uma movimentação fluida, focada em soltar as articulações da coluna — da cervical ao cóccix. “Pensei: nossa, dançar com essa música tão sublime vai ser difícil. Ela vai predominar sobre a minha movimentação tão simples”, relembra. No entanto, à medida que a música se desenrolava, um sentimento profundo de ternura foi surgindo, a ponto de emocioná-la e se traduzir em sua dança. “Sou católica, e Nossa Senhora tem estado mais presente em minha vida nos últimos meses”, confidenciou. “Acho que essa música fez aflorar isso. E foi uma surpresa, porque não havia comentado nada com a Nathalia a respeito", ponderou.

Nathalia revelou que a letra da música foi o meio e o corpo de Luiza o veículo para encontros. "Acredito que um intérprete de dança deve buscar sua identidade por meio do movimento e foi o que trabalhei com a Luiza na residência. A música fala sobre os caminhos, sobre o fluxo da água que corre e se transforma, e trasladamos isso para a investigação".

Ao longo da residência, além de desafios profissionais, elas tiveram que lidar com suas vidas escorrendo como a correnteza forte de um rio. “Passamos por momentos difíceis em nossas vidas, nos últimos anos, na esfera pessoal. Realizar este projeto junto foi uma forma de nos ajudarmos mutuamente a nos reerguer e a cultivarmos a esperança em nossas vidas”, contou Luiza.

PARTILHA

Luiza Rosa já compartilha os conhecimentos com grupos de dança campo-grandenses. Foto: Vaca AzulLuiza Rosa já compartilha os conhecimentos com grupos de dança campo-grandenses. Foto: Vaca Azul

De volta à capital sul-mato-grossense, Luiza disse que deseja transmitir o que aprendeu e já iniciou. “Realizei partilhas do processo de criação de nossa residência artística com a companhia de dança Selma Azambuja e com alunos da graduação em dança da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Meu objetivo em relação à companhia Selma Azambuja foi o de sensibilizá-los para ficarem mais em contato com eles mesmos enquanto se movimentam, enquanto dançam. Que levassem em consideração seus estados de consciência, estados emocionais, os movimentos mais sutis do corpo, em vez de encobri-los para mirar apenas objetivos de aparência cênica mais explícita e mais ampla”.

Para a turma da UEMS, ela disse que buscou proporcionar a eles acesso a ferramentas e um olhar para a criação em dança. “Que podem vir a contribuir com o desenvolvimento de autonomia deles enquanto criadores/artistas. Busquei ajudá-los a observarem o entorno e a si mesmos para irem encontrando motivos para criar e dar um sentido único às coisas”.

Luiza Rosa. Foto: Vaca AzulLuiza Rosa. Foto: Vaca Azul

Além disso, Luiza adiantou que vai imprimir uma revista em Braille, contando sobre a residência artística. “Para estimular a imaginação criativa de pessoas cegas, e editei um vídeo, que filmamos na Espanha, que será apresentado aos profissionais da saúde, com o intuito de agradecê-los por terem atuado durante a pandemia de COVID-19 – isso porque o edital Paulo Gustavo, que viabilizou esse intercâmbio artístico, foi criado durante o período da pandemia, com o intuito de contribuir com a classe artística que ficou comprometida em decorrência do confinamento social. Estou articulando a apresentação desse vídeo com a Secretaria de Saúde de Campo Grande e com o Hospital Regional”, revelou.

Luiza oferece workshop aos alunos de dança da UEMS em Campo Grande (MS). Foto: Vaca AzulLuiza oferece workshop aos alunos de dança da UEMS em Campo Grande (MS). Foto: Vaca Azul

A professora Nathalia disse que a proposta da primeira etapa do projeto era começar um processo de investigação que mais para frente pode se transformar em um solo, então: “Por enquanto, esta fase foi uma aproximação e toma de contato para continuar trabalhando com a Luiza”, desejou.

Provocadas a resumir a grande experiência em uma palavra, Luiza escolheu “Satisfação” e Nathalia “Fluxo”.


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Tags: Luiza Rosa, Milton Nascimento, Nathalia Pettengill Fernandes, Quem sabe isso quer dizer, residência artística, Sotillo de La Andrada

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