Logo TeatrineTV
Artes Cênicas

​“Zé Celso é a mãe do teatro-circo no Brasil”, dizem precursores

São 44 anos passados desde que o AbrAcAdAbrA encontrou Zé Celso

Por TERO QUEIROZ • 11/07/2023 • 06:09

​Os precursores do teatro-circo no Brasil se conectaram na Academia Piolin de Artes Circenses, a primeira escola de circo do Brasil e da América Latina, em São Paulo, no final dos anos 70. 

À época, a prática híbrida era estranha ao teatro e não era bem recebida nos circos de lona. Apesar disso, o dramaturgo e ator Zé Celso, ofereceu o espaço do Teatro Oficina como 1ª morada da nova linguagem. 

“Ninguém queria nossa proposta. O Zé Celso abrigou essa trupe de homens e mulheres cabeludas, um bando de maluco que estava se arriscando. Ele olhou generosamente para nós e ali deu a oportunidade de que nascesse no Brasil a prática do teatro-circo”, considerou Breno Moroni, de 68 anos, em uma conversa exclusiva com a reportagem do TeatrineTV. 

Anteriormente, contamos a história individual da carreira de Breno Moroni aqui. Agora, falaremos sobre o grupo pioneiro de teatro-circo fundado por Breno e outros colegas, alunos da academia Piolin: o AbrAcAdAbrA.

SURGIMENTO DO ABRACADABRA

Breno Moroni e Luiz Ramalho. (Aquivo: auto retrato com palhaços... Te-ato Oficina - 1980). Foto: Ennio Brauns
Breno Moroni e Luiz Ramalho. (Aquivo: auto retrato com palhaços... Te-ato Oficina - 1980). Foto: Ennio Brauns

Breno concluiu os cursos de teatro e cenografia (1971 a 1976), na Escola de Teatro do Rio de Janeiro (F.E.F.I.E.R.J). Em 1976, ele foi para Europa em busca de especialização. No exterior, se deparou com algo até então não visto, a mistura do teatro e circo a outras várias linguagens. Ao retornar para o Brasil em 1979, Breno ingressou na Academia Piolin, levando consigo o paulista Luiz Ramalho, que na época dividia apartamento com Breno e estava envolvido em movimentos estudantis, lutava contra a repressão militar e havia feito teatro amador na periferia de São Paulo. 

“Eu achei aquela ideia maravilhosa, poxa uma escola de circo, peguei e fui com ele e já me inscrevi junto. Aí, a gente entrou nessa escola de circo e eu me fascinei por essa linguagem, principalmente, pela influência do Breno, que já vinha com essa linguagem de teatro e circo desses movimentos que estavam acontecendo no mundo inteiro”, introduziu Luiz, que hoje aos 60 anos, é ator, circense e produtor cultural na Capital paulista. 

O palhaço que aparece sozinho segurando uma galinha é o Luiz Ramalho.
O palhaço que aparece sozinho segurando uma galinha é o Luiz Ramalho.

A compreensão de que havia um movimento global em torno do teatro-circo, para Luiz, está em um campo energético, espiritual. “Não sei te explicar, acho que é um fenômeno mágico que acontece no mundo inteiro. É que nem Rock, todo mundo começa a tocar Rock aqui, acolá, e daqui a pouco: uow! Rock’n Roll! Na nossa época, assim — se você comparar, todos os grupos eram muito parecidos — porque o mesmo movimento estava acontecendo na Europa, na Austrália com circo Oz, com Cirque du Soleil lá no Canadá, na França, que era esse tipo de misturar técnicas circenses com teatro de absurdo, com intervenções urbanas ocupando todos os espaços possíveis numa ​​​multilanguage moderna, irreverente e revolucionária”, considerou.

1980 - Grupo Abracadabra derrotando o General Catintin.
1980 - Grupo Abracadabra derrotando o General Catintin.

Dentro da Piolin, Breno e Luiz, uniram-se a Fernando Cattony, Malu Morenah, Marly Silva e Verônica Tamaoki, todos alunos da nova academia. Desses, a única que não integraria o AbrAcAdAbrA formamente é Tamaoki.

Malu Morenah deitada e a Verônica Tamaoki apoiada de joelho. O palhaço com figurino de losangos, que está de pé jogando malabares, é o Breno Moroni. Foto: Arquivo
Malu Morenah deitada e a Verônica Tamaoki apoiada de joelho. O palhaço com figurino de losangos, que está de pé jogando malabares, é o Breno Moroni. Foto: Arquivo

Logo, o coletivo começou a ocupar as ruas e praças com suas apresentações híbridas. Numa das apresentações, na Rua dos Ingleses, em frente ao Teatro Ruth Escobar, a turma da Piolin foi vista pelo diretor teatral Olney Nogueira de Abreu, também formado na F.E.F.I.E.R.J. “Um dia, no Ruth Escobar, eu olhando lá para baixo e vi uma movimentação na rua. Aí eu olho no palco, tem um carinha no palco fazendo circo. Era um pessoal da Escola Piolin De Artes Circenses. O pessoal que fazia curso de circo lá montou um grupo chamado Come Terra... Fui ver a apresentação, tô olhando a apresentação e, de repente, o cara sai do palco e me dá ​'​um tapa na cara​'​. Aí eu olhei bem, era o Breno, que eu não via há tempos, ele tinha feito escola de teatro comigo. Fizemos alguma coisa na escola de teatro e ele estava lá em cima. O Breno fazendo circo, jogando malabares”, reviveu Olney Nogueira de Abreu, que hoje aos 70 anos, mora em Vargem (SP). 

Olney Nogueira de Abreu (à esquerda). Breno Moroni (à direita). Foto: Arquivo
Fernando Cattony (à esquerda). Breno Moroni (à direita). Foto: Arquivo

Olney era formado em direção teatral pela F.E.F.I.E.R.J e topou unir-se ao coletivo da Piolin para dar vida a uma ideia que vinha gestando. “O Olney tinha recém fundado um grupo chamado AbrAcAdAbrA, porém ele não tinha pessoas ainda, ele tinha a ideia de botar esse nome. Aí a gente se juntou com o Olney e começamos a montar o AbrAcAdAbrA. Aí a gente começou a desenvolver o nosso trabalho como AbrAcAdAbrA”, especificou Luiz.

“Eu já era apaixonado pelo Breno, faz tempo. Aí fizemos uma bela união. Começamos a trabalhar na rua, jogando o circo, eu no caso, como não dominava muito técnicas circenses, eu fazia mais o palhaço, faquirismo, pirofagia... E junto com o Breno, a Malu, Luís Ramalho, Fernando Cattony, uma turminha nossa lá, nós começamos a fazer o tal do show de Rua, foi onde nasceu o ‘ teatro-circo'”, cravou Olney. 

DENTRO DA PIOLIN E NAS RUAS

Pioneira, a Academia foi fundada pela Associação Piolin de Artes Circenses, com amparo oficial do Governo paulista por meio da então Secretaria de Estado dos Negócios da Cultura, Ciência e Tecnologia. As atividades da escola começaram em 1977. 

Na academia, o grupo teve acesso às técnicas e a estrutura, com professores de alto gabarito, para pesquisar a fundo a mistura de linguagens. Apesar da simplicidade nos equipamentos oferecidos, a unidade que funcionava sob a arquibancada ‘tobogã’, no Ginásio Pacaembu, permitiu um estudo miscigenado e cativou personagens que viriam a ser integrantes do AbrAcAdAbrA. 

Registro de aula em baixo do tobogã do Pacaembú, durante a 1ª fase do funcionamento da escola Piolin.O professor que está observando, gesticulando e provavelmente, dando orientações para a aluna que salta na cama elástica, que aparece de frente, com o moletom fechado ao fundo atrás da cama elástica é o Roger Avanzi. A ex-aluna Marly Silva reconheceu aqui mais algumas pessoas! A moça que está dando um salto mortal pulando corda na cama elástica é a Márcia Regina; a professora de costas é a Amercy; e o professor na ponta da corda é o Santiago. Foto: Arquivo
Registro de aula em baixo do tobogã do Pacaembú, durante a 1ª fase do funcionamento da escola Piolin.O professor que está observando, gesticulando e provavelmente, dando orientações para a aluna que salta na cama elástica, que aparece de frente, com o moletom fechado ao fundo atrás da cama elástica é o Roger Avanzi. A ex-aluna Marly Silva reconheceu aqui mais algumas pessoas! A moça que está dando um salto mortal pulando corda na cama elástica é a Márcia Regina; a professora de costas é a Amercy; e o professor na ponta da corda é o Santiago. Foto: Arquivo

“Quando eu cheguei lá, me encantei! Era como se fosse umas quatro ou cinco quadras dessas poliesportivas, uma atrás da outra, emendadas como num corredor. E ali embaixo, tinha espaço com trapézio, cama elástica, arames, espaço para malabares, monociclo, área da acrobacia, contorcionismo, palhaços e tal... E aquilo me encantou de um jeito... E as pessoas, que logo de início a gente criou contato. Uma das primeiras pessoas a criar [contato comigo] foi o Luiz Ramalho, que é irmão até hoje. Fomos dupla na época, porque fazíamos muito trabalhos de acrobacia juntos, como volante e portô. E também a Malu”, relembrou com detalhes o ator, músico e educador Fernando Cattony, de 64 anos, que atualmente mora em Fortaleza (CE). 

Luiz Ramalho, com a bolsa. Fernando Cattony, de gravata borboleta. Foto: Arquivo

Para Cattony, quando Breno entrou na Piolin em 1979, parte dos alunos aderiram às novidades trazidas pelo artista que até então, havia passado por 7 países europeus. “Breno foi o catalisador que trouxe a novidade. Um ator que era formado por faculdade de teatro no Rio com a experiência de estrada. Ele rodou o mundo, né? Trouxe muito conhecimento e precisava de um grupo de malucos que encarassem essas ideias loucas, que topassem fazer essas ideias juntos”, opinou Cattony.

Fotos encontradas pela pesquisadora coladas numa folha com timbre da Associação Piolin de Artes Circenses. Entre as pessoas identificadas, Roger Avanzi, professor, aparece na segunda imagem, no palco com uma aluna, ensinando bicicleta.
Fotos encontradas pela pesquisadora coladas numa folha com timbre da Associação Piolin de Artes Circenses. Entre as pessoas identificadas, Roger Avanzi, professor, aparece na segunda imagem, no palco com uma aluna, ensinando bicicleta.

Unidos, os integrantes do grupo faziam apresentações em espaços alternativos, frequentemente nas ruas, abordando polêmicas e viravam notícia, muito em razão das temáticas abordadas. “Tinha nossas reivindicações e tudo mais. Tínhamos, na época, uma linha mais à esquerda lutando pela democracia, essa coisa toda. Vários eventos como as ‘Diretas Já [março de 1983]’ e outros, nós participamos performativamente e morávamos todos juntos, montamos uma república dessa galera que era do teatro-circo”, explicou Luiz. 

“A gente morava na Vila Madalena, na Rua Girassol e ‘mambembeando’ dentro desse universo, porque a gente ia para a Praça da Sé para ter o que comer (sic)”, precisou Cattony. 

“Aí começamos a misturar ainda mais a coisa do teatro com as técnicas, malabarismos, cinema, e apostamos no drama. Estávamos interessados em fugir do lugar comum, daquilo de circo ter que ser engraçado. Tínhamos as ideias e o grupo, mas não tínhamos nenhum local para apresentar”, ponderou Breno. 

MULHERES LEVARAM PIOLIN AO OFICINA

Aconteceu em 1977, na Rua Girassol na Capital paulista - Malu Morenah e Verônica Tamaoki em apresentação na primeira Feira da Vila Madalena. Foto: Ennio Brauns
Aconteceu em 1979, na Rua Girassol na Capital paulista - Malu Morenah e Verônica Tamaoki em apresentação na primeira Feira da Vila Madalena. Foto: Ennio Brauns

O  grupo AbrAcAdAbrA muitas vezes teve problemas em suas apresentações nas ruas. A ditadura militar vigente no país atrapalhava que as pesquisas avançassem. Ainda assim, integrantes iam às ruas em busca do pão-de-cada-dia e exploravam a multilinguagem estudada denunciando o estado  de recessão.

A também aluna da Piolin, ​​Verônica Tamaoki, tinha um duo com a integrante do AbrAcAdAbrA, Malu Morenah. Elas eram muito vistas na Praça da Sé, inclusive, eram as únicas mulheres em tal atividade naquela praça à época. Numa das apresentações delas, Zé Celso se aproximou estendendo um convite.

Malu Morenah e Verônica Tamaoki em apresentação na primeira Feira da Vila Madalena. Foto: Ennio Brauns
Malu Morenah e Verônica Tamaoki em apresentação na primeira Feira da Vila Madalena. Foto: Ennio Brauns

“É, éramos bem jovens! Então, a gente teve essa audácia de ir para a Praça da Sé, enquanto muita gente fazia teste para peça infantil, a gente ia para a rua. E um dia – claro que eu já tinha ouvido falar do Zé Celso — ele passava pela gente, me lembro, ele era já um artista muito importante. E um dia, na Praça da Sé, eu e a Malu estávamos fazendo uma roda e ele chegou. Ele sempre foi muito generoso com a gente, né? E ele falou: vai pro teatro. O teatro tá lá, monta uma peça! (sic)”, revelou Verônica, que hoje, prestes a completar 65 anos, vive em São Paulo, onde é Coordenadora do Centro de Memória do Circo, da Secretaria Municipal de Cultura.

Pesquisadora circense, Tamaoki escreveu livros como ‘Fantasma do Circo’, ‘Teatro Polidoro’, e sua grande obra ‘O Circo Nerino’, escrito com Roger Avanzi, o Palhaço Picolino. Tamaoki é também uma das tradutoras do clássico ‘Esperando Godoh’ (principal obra do irlandês Samuel Beckett), que também conta com a tradução de ​​​​​Catherine Hirsch ​​e Zé Celso.

O convite de Zé ao duo se estendeu também aos demais integrantes do AbrAcAdAbrA. Isso tudo ocorreu logo após o fundador do Oficina voltar do exílio da Ditadura Militar, no final dos anos 70. Na época, o dramaturgo buscava parcerias para manter o espaço do Oficina ocupado enquanto ele fazia estudos no Nordeste brasileiro. 

“O teatro estava meio que sem cadeira, sabe? Não estava em demolição, mas ele estava careca, ele não tinha cortina, não tinha luz, não tinha nada. E ele [Zé Celso] tinha voltado do exílio, aí montou um grupo e ficou lá no Nordeste um tempão com esse grupo. E numa dessas vindas dele para São Paulo, nessa história, ele deixou o teatro com a gente. Ele abriu as portas, acolheu, foi isso! O Zé sempre foi um visionário, sempre foi uma pessoa com muita, muita sensibilidade. Foi bom para ele, foi bom para a gente. A gente tomou conta do teatro”, esmiuçou Malu Morenah, que hoje, aos 61 anos, vive em Campo Grande (MS). Ela é uma das discípulas de Roger Avanzi, o segundo Palhaço Picolino.

“Chegamos na maior cara de pau no Teatro Oficina e nessa nós entramos. A casa era nossa, o Zé deu o teatro para nós trabalhar. Eu sinto saudades. O José Celso Martinez foi um pai para nós. Ele abriu as portas do teatro para o grupo AbrAcAdAbrA (sic)”, recordou a trapezista Marly Silva, que hoje vive em Itapetininga (SP).

  • Marly Silva faz acrobacia aérea na Rua Jaceguay - 1980 — com Breno Moroni e Malu Morenah.

São 44 anos passados desde que o AbrAcAdAbrA encontrou Zé Celso, há, portanto, diferentes entendimentos de qual foi o caminho exato trilhado pelos alunos da Piolin até o Oficina. Malu Morenah, por exemplo, disse acreditar que a conexão entre o dramaturgo e os estudantes foi feita por uma artista, oriunda do balé clássico, que conhecia ‘o povo do teatro’. “Se eu não me engano, quem levou a gente para o teatro foi a Nina. Ela era bailarina clássica e fazia peças infantis ali no teatro Brigadeiro, no teatro Bibi Ferreira, por ali... E ela fazia escola de circo também! Ela é atriz até hoje, [na época] ela que estava mais metida com o povo assim do teatro, né? Pessoa de família de atores e atrizes... E eu acho que foi ela que levou a gente para lá, pro teatro (sic)”, anotou Malu. Em todo caso, o trupe do Piolin teria chegado até Zé Celso por meio de iniciativa de artistas mulheres.

"TEATRO OCO, MAS CARREGADO DE ESPÍRITO"

1980 - Grupo AbrAcAdAbrA se apresenta no Teatro Oficina. Foto: Arquivo
1980 - Grupo AbrAcAdAbrA se apresenta no Teatro Oficina. Foto: Arquivo

Após ocupar o espaço, o grupo se deparou com aliados importantes. “Tinha o Mestre Lua que morava lá, da Bahia, o Surubim e tinha a Zuria, que era a cozinheira lá embaixo que fazia faxina. Então ficamos nós lá naquele teatro, muito tempo”, contou Malu.

A carência de equipamentos para as manobras circenses não foi impecílio para uso do espaço do oficina, pois os aprendizados com os mestres da Piolin e outros, preparou os integrantes do grui.  “Aprendi iluminação, aprendemos todas essas técnicas de improvisar, de não ter recurso e fazer uma coisa, um luxo, do lixo, sabe? Então, é entrar num teatro oco, vazio, mas carregado de espírito, você não imagina o tanto de coisa que tinha ali naquele teatro, nossa senhora (risos)! As portas abriam sozinhas, fechavam, era uma doideira! E a gente encarou isso numa boa”, assomou. 

“No meu caso, como trapezista, era mais difícil porque ali não tinha trapézio. Então, os meninos montaram um grupo de dois e fazíamos uma estrada braçal, subia nas ferragens do teatro, lá de cima eu pulava como um voo nos braços deles. E era muito gratificante, e ficava muito bonito e graças a Deus nunca nos machucamos”, celebrou Marly.

“BÍBLIA, CIRCO E GUERRILHA”

O Abracadabra em frente ao Teatro Oficina chamam público pra peça 'Onde Estás', do ator e diretor Breno Moroni, em 1980. Foto: Ennio Brauns

Agora, tendo um espaço para trabalhar, o grupo AbrAcAdAbrA passou a aprofundar suas pesquisas.

Conforme Luiz Ramalho, a primeira montagem feita pelo coletivo foi um trabalho ao público infantil. “A gente chegou lá  e fizemos vários trabalhos. Um deles foi uma peça infantil ‘Tele Invasão’, que foi a primeira peça profissional que fiz na minha vida, lá no Oficina”, ementou.

Depois, em 1981, , o AbrAcAdAbrA montaria aquela que se tornaria a 1ª peça dramática feita na linguagem do teatro-circo no Brasil, o espetáculo ‘Onde Estais?’, escrito por Breno e Olney.

Onde Estas? - Corda de 7 metros foi usada no primeiro espetáculo de  teatro-circo com drama no Brasil. Foto: Ennio Brauns
Onde Estas? - Corda de 7 metros foi usada no primeiro espetáculo de teatro-circo com drama no Brasil. Foto: Ennio Brauns

“Aliás, uma peça brilhante! Na época muito inovadora com todas as técnicas que a gente usou... Chamava-se ‘Onde Estás?’ e falava sobre a Guerrilha do Araguaia”, inseriu Luiz.

“Contava a história de um pastor preso num buraco. Que tinha tido uma amada... A história é inspirada em fatos”, prosseguiu Moroni.

Breno Moroni em cena no espetáculo 'Onde Estas'? Foto: Ennio Brauns
Breno Moroni em cena no espetáculo 'Onde Estás'? Foto: Ennio Brauns

“Era também uma homenagem à irmã do Breno Moroni, que tombou lá na Guerrilha do Araguaia, nos anos 70”, expôs Luiz.

“Foi guerrilheira no Araguaia, né? Jana Moroni Barroso. E ela tinha um marido... Não era um pastor como a gente botou na peça, né? Foi uma peça que falava de desaparecidos políticos, tortura, ditadura, religião. O nosso slogan era: ‘Bíblia, circo e guerrilha’!”, realçou Moroni.

Cartaz do 1º espetáculo damático de teatro-circo do Brasil. Foto: Arquivo
Cartaz do 1º espetáculo damático de teatro-circo do Brasil. Foto: Arquivo

Nesse espetáculo pioneiro muita coisa de teatro entrou no circo e vice e versa. “Nós tínhamos acrobacias de chão, de solo, misturadas com texto. Tínhamos acrobacias  em cima da mesa que chamamos no circo de Dandes... Tínhamos uma corda Indiana de 7 metros de altura. É, tínhamos uma cama de cacos de vidro de 5 metros na boca de cena do palco, que simbolizava o Rio Araguaia. A peça finalizava com técnicas de dublê, que é o homem tocha, né? Eu colocava fogo no corpo, né? Na roupa, na verdade, claro. Todas as noites, né? O espetáculo terminava assim, com um homem pegando fogo, adentrando a plateia e depois voltando para o pai. E os 3 contrarregras. Era uma peça, era um monólogo, mas tinha 3 contrarregras, Malu, Fernando Cattony e Luiz Ramalho. Era uma peça de teatro-circo de drama. Uma coisa que se vê muito é o circo teatro, né? Que é o cara assim, mais colorido, mais para a personagem do palhaço, fazendo malabarismo com bolinhas e claves dando umas cambalhotas, isso aí já é outra coisa”, minuciou Moroni.

“E isso também naquela época que a gente estava no Oficina era muito ousado, também porque era muito tenso. A gente teve vários momentos de tensão por estar trabalhando com um conteúdo desses”, analisou Luiz.

CENSURA! SP --> RJ

Onde Estas? Teatro Oficina 1980
Onde Estas? Teatro Oficina 1980

O grupo AbrAcAdAbrA ocupou o Oficina ao longo​ de​ 8 meses, depois se uniram à trupe que Zé Celso trouxe do Nordeste.

“Quando o Zé chegou com a companhia, a companhia toda se apaixonou pelo que estava acontecendo lá dentro, o Zé também, porque quando ele nos abriu espaço, foi viajar 8 meses, era uma coisa, quando ele voltou a gente já estava em outro nível, né? Já, por nossa conta! E aí foi mais apaixonante ainda”, reviveu Malu.

Com seu retorno a São Paulo, entretanto, Zé continuou sendo perseguido pela repressão Militar. Na época, com a companhia que trouxe do Nordeste, criou o “Ensaio Geral do Carnaval do Povo”, peça teatral que foi censurada por 185 dias pelo regime ditatorial.

Malu Morenah na Rua Jaceguai em 1979. Foto: Arquivo
Malu Morenah na Rua Jaceguai em 1979. Foto: Arquivo

O AbrAcAdAbrA seria a próxima vítima da violência dos militares. “Só estávamos nós trabalhando no Teatro. Montamos o ‘Onde Estás’, foi o marco da fundação do grupo AbrAcAdAbrA. Primeiro espetáculo mesmo de teatro com circo, etc. Nessa época, também estava o Asdrúbal Trouxe o Trombone, em São Paulo. O que aconteceu, é que um dia nós tivemos que parar o espetáculo ‘Onde Estás?’, com pessoas com metralhadoras na plateia. Nós fomos todos fichados no DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], no Deic [Departamento Estadual de Investigações Criminais], de São Paulo, depois de 30 anos eu vi isso, até eu. Foi quando o Asdrúbal estava lá, tinha gente do Asdrúbal vendo nossa apresentação e já queriam nos convidar, entendeu? Foi quando a gente disse: sim! Nós estamos indo para o Rio de Janeiro com vocês...”, disse Malu.

Grupo AbrAcAdAbrA chega ao Rio de Janeiro em 1981. Foto: Arquivo
Grupo AbrAcAdAbrA chega ao Rio de Janeiro em 1981. Foto: Arquivo

Na capital carioca, AbrAcAdAbrA ainda desenvolveu trabalhos com Luiz Antônio Martinez Corrêa. “Trabalhamos como irmão do Zé, o Luiz Antônio... Era a sucursal carioca, um grande diretor”, brincou Malu.

Malu Morenah, Fernando Cattony, Luiz Ramalho, Breno Moroni, Denize Crepsk, Mara Manzan (in memorian), Tatiane Lomba, entre outros, na CINELANDIA em 1981. Foto: Arquivo
Malu Morenah, Fernando Cattony, Luiz Ramalho, Breno Moroni, Denize Crepsk, Mara Manzan (in memorian), Tatiane Lomba, entre outros, na CINELANDIA em 1981. Foto: Arquivo

OLHAR FUTURISTA

(À esquerda, Luiz Ramalho, em foto recente com Zé Celo).
(À esquerda, Luiz Ramalho, em foto recente com Zé Celso).

Para Luiz Ramalho, Zé Celso antecipou que a proposta do AbrAcAdAbrA era algo que no futuro seria sedimentado.

“Com a capacidade que ele tem, da linguagem que ele tem, popular, do entendimento que ele tem da arte popular brasileira, em todos os setores, cinema, teatro, circo e por aí vai... Eu acho que essa intuição dele, o fato de ele ter esse espírito, né? Essa pajelança dele no espiritual, ele acabou [ajudando] a gente, acho que nem intencionalmente, porque quando ele abraçou a gente, ele ficou muito feliz. Ele falou​:​ Vem para cá, vocês são a novidade, vocês são a coisa que está na cena​! O Zé sacou, ele conseguiu, ele foi visionário. Ele conseguiu entender que a gente estava fazendo uma coisa nova, que não era nem teatro e nem circo, era teatro-circo. Então, ele foi o nosso padrinho, nosso cara, que nos apadrinhou espiritualmente e artisticamente para dar início ao teatro-circo no Brasil, que são pessoas que vem do Teatro que aprenderam o circo e começaram a misturar ​multilinguagem... Então acho que o Zé, ele tem um papel fundamental nesse início do teatro-circo no Brasil”. 

Consonante, Cattony apontou que na época os integrantes do AbrAcAdAbrA, na sua opinião, não conseguiam mensurar o quão gigantes eram aqueles artistas e aquele coletivo anfitrião.

“Não tínhamos a real noção de onde estávamos e quem eram aquelas pessoas. Hoje a gente vendo, a gente fala puxa vida, estávamos ali todo mundo junto respirando e transpirando no mesmo ambiente. Foi um período muito intenso esse do ano de 80, porque foi o período que ficamos no Teatro Oficina e lá tivemos condição de experimentar muitas coisas. Porque é um espaço vivo, o teatro é um espaço vivo, pulsante! E sempre tinham pessoas, as portas estavam abertas, mesmo numa época estranha que às vezes entravam figuras que você olhava e falava: ai! Sabia que era gente que estava indo lá só para bisbilhotar mesmo, para estar olhando de perto o que estava acontecendo. Havia uma vigilância federal muito grande em cima desses lugares, porque eram revolucionários, são revolucionários, quer queira ou não, são revolucionários. E as pessoas que estavam ali levantavam bandeiras mesmo”.

Breno disse acreditar que Zé viu no AbrAcAdAbrA novos caminhos do fazer teatral. “Isso ampliou ainda mais a mente do Zé. Ele começou a colocar coisas circenses nas produções do Oficina. Ele me chamou para o Ham-let, para consultoria técnica, para que os atores dele fizessem saltos e malabarismos em cordas em espetáculos”, lembrou. 

Luiz Ramalho disse ainda que a convivência com o Oficina e com Zé o impactou radicalmente e para sempre.

“Eu e o Fernando [Cattony], teve uma época e que a gente não tinha onde morar, então, eu morei lá um tempo, no Teatro Oficina, que aí eu cuidava da introdução, de cenários. Era um reduto de uma linguagem assim, fora da curva do sistema, né? Então era muito cult, muito cultuado pela vanguarda aqui de São Paulo e do Brasil, porque tinha gente no Brasil inteiro, que ia frequentar e beber nessa fonte que é o Teatro Oficina. Foi uma época que floresceu muita coisa diferente, muita coisa que nasceu ali, e a gente estava no meio desse epicentro cultural, no momento certo, na época certa de tudo acontecendo numa proporção de inspiração muito grande... A gente convivia com o Zé, bastante, porque convivíamos como família. O Zé morava do lado, no Oficina tinha uma comunidade, tinha uma cozinha. Então a gente comia lá, dormia lá. Encontrava com o Zé toda hora, almoçava com ele, fazia reuniões, assistia os ensaios que ele fazia com outros grupos, trocava ideias. Enfim, se misturando e trabalhando como uma comunidade artística de multilinguagem ali dentro do Oficina. Então, foi muito rica essa época para nós, para mim, eu tenho uma grande lembrança porque é o comecinho da minha carreira. E dentro de um movimento super revolucionário na época, de muita mudança, de muita coisa nova acontecendo”, atestou Luiz.

“VIVA O ZÉ”

Zé Celso durante apresentação no teatro Oficina em 1979 — Foto: Mario Leite/Estadão Conteúdo
Zé Celso durante apresentação no teatro Oficina em 1979 — Foto: Mario Leite/Estadão Conteúdo

“O Zé foi o cara que abraçou todos os malucos, todos os alternativos e revolucionários... Para o pessoal de circo somos rasca, para pessoal do teatro nós somos de circo, para o pessoal do cinema nós somos da televisão, para o pessoal da televisão nós somos do cinema, ou seja, nós somos a raça híbrida da coisa toda. Com certeza o teatro-circo foi ali que foi fundado”, disse Luiz Ramalho.  

“No caso do teatro-circo e esse nosso início no AbrAcAdAbrA, ele influenciou muito. A gente tinha muita visibilidade, a gente estava sempre ocupando espaços inusitados com essa ​m​ultilinguagem que surpreendia muito as pessoas na época. Vários grupos foram lá estudar e trabalhar com a gente, Intrépida Trupe, aprenderam circo com a gente e sob nossa influência. Aí o Manhãs e Manias, que era um grupo importante de vanguarda também no Rio de Janeiro, bebeu da nossa fonte também, e começou a fazer uma linguagem de teatro-circo. E logo depois a gente conseguiu ajudar a fundar o Circo Voador, que foi uma coisa muito expressiva culturalmente no Rio de Janeiro e virou um espaço muito importante na década de 80, que tinha tudo, teatro, circo, dança, música...”, completou Luiz. 

A conclusão de que Zé Celso oportunizou o nascimento do teatro-circo, colocada por Breno e sua turma da Piolin, surgiu nos dias em que Zé Celso lutava pela vida após sofrer queimaduras num incêndio em seu apartamento na Capital paulista.

“Me toquei de uma coisa muito importante: éramos alunos da academia Piolin... A importância do Zé para o teatro é inegável, para o cinema também, agora o teatro-circo deve muito ao Zé, muito mesmo. Imagina se a gente não tivesse sido acolhido pelo Teatro Oficina, a gente teria ido só lá para a Praça da Sé rodar um chapéu, e onde estaria a história do teatro-circo no Brasil se não fosse aquele primeiro momento. Eu acho que foi ali no Teatro Oficina que nasceu a história do teatro-circo no Brasil”, sustentou Moroni.

Essa foto é de 2013. Verônica é a de azul.
Essa foto é de 2013. Verônica é a de azul.

Malu Morenah e Verônica Tamaoki até os dias de hoje fazem contribuições em conjunto com o Oficina. “Ainda estamos vivendo essa, essa dor que foi a partida do Zé. Eu moro em São Paulo, eu moro ao lado do Teatro Oficina. Minha vida se cruza muito com Oficina. Não só em 80, mas eu trabalhei com Oficina em muitas outras peças. Então foi uma dor muito grande. Um ator muito grande. A partida dele, muita coisa, então não pude te falar”, disse Verônica, muito impactada com a perda.

"O Zé nos deu o que ele não sabia negar, sua generosidade, sua arte e a oportunidade de chegar a um lugar distante do comum. Nós fomos as cobaias de algo que com apoio do Zé deu certo. Eu vinha trabalhando frequentemente com ele nos últimos anos. Viva o Zé! Viva a arte do Zé!", concluiu Malu.

Para o multi-artista, Zé Celso morreu em carne, mas é eterno em sua contribuição ao desenvolvimento cultural do seu país. “Viva o Zé, a mãe do teatro-circo no Brasil”, finalizou Moroni.


Google News

Tags: #TeatrineTV, #teatro, AbrAcAdAbrA, Academia Piolin, Breno Moroni, Circo, CULTURA, dança, destaque, destaque_principal, Fernando Cattony, Malu Morenah, Marly Silva, Mato Grosso do Sul, música, Olney Nogueira de Abreu, Roger Avanzi, teatro-circo no Brasil, Verônica Tamaoki, Zé Celso

Veja Também

Nos apoie:

Chave PIX:

27.844.222/0001-47

QR Code para doacao