
Um voo registrado pode ser mais do que beleza: pode ser gesto político, mediação ética ou memória ecológica. Essa é a clara aposta do Cine Aves, festival realizado em Campo Grande (MS) que, em sua quarta edição, reitera uma ideia tão simples quanto radical: as aves não são apenas objeto de contemplação — são linguagem.
Pela primeira vez contemplado pela política pública cultural, essa edição é realizada com recursos da Lei Paulo Gustavo; a cerimônia de premiação ocorreu na manhã de 18 de junho, no Bioparque Pantanal, onde o Cine Aves reuniu educadores, cientistas, crianças, cineastas e curiosos para uma inesquecível passarinhada, seguida da cerimônia que convidou o público a refletir, por meio da imagem e do som, sobre as intrínsecas relações entre cultura e biodiversidade.

A mostra de 2025 bateu recorde de público — com cerca de 250 pessoas presentes — inovou ao ampliar suas exibições para além do auditório, ocupando um ônibus turístico e a passarela do Bioparque, fomentando, assim, encontros inesperados e sensoriais entre visitantes e os cantos das aves. “Acredito profundamente nisso: quando unimos arte, ciência e educação, conseguimos transformar o mundo — ambientalmente e socialmente”, afirmou Simone Mamede, coordenadora do festival, em entrevista ao TeatrineTV, no final da ação eco-cultural.

No Brasil, o primeiro e único festival de cinema especializado em aves consolidado é o Festival Cine Aves, com foco em curtas-metragens sobre a avifauna brasileira.
Para Simone, mais do que uma mostra audiovisual, o Cine Aves é um “movimento de base” que atua como janela de transformação social e ecológica.

Também compreendendo a programação antes da cerimônia de premiação, ocorreu uma palestra com o ornitólogo e influenciador Willian Menq, criador do canal Planeta Aves , que possui mais de um milhão de seguidores, em sua maioria crianças. Menq é autor do livro “Aves de rapina do Brasil: todas as espécies”. “Quando criei o canal, não tinha intenção de atingir o público infantil. Mas, ao perceber o interesse crescente das crianças, adaptei minha linguagem, pois elas são essenciais no processo de conscientização ambiental. Talvez, um passarinheiro mirim de hoje seja um tomador de decisões ambientais no futuro”, destacou Menq, que foi vencedor da segunda edição do Festival, em 2018, antes de se tornar produtor de conteúdo digital.

Essa transformação não se restringe ao campo simbólico. Para a bióloga e cineasta Rita de Cássia Sousa, vencedora do segundo lugar na categoria Amador, o impacto do festival foi imediato. “Com esse reconhecimento, consegui impedir a devastação de um taboal no dia seguinte. O Cine Aves ampliou a conservação para além do Mato Grosso do Sul. É real”, relatou.

No centro do projeto está um movimento para reconfigurar o papel da cultura na conservação ambiental. As aves, frequentemente vistas como pano de fundo da paisagem, tornam-se protagonistas narrativas — ou melhor, articuladoras de sentidos. O olhar passa a ser treinado; a escuta, também. E, nesse processo, instaura-se um convite ao pertencimento. “Quando olho para as aves, não vejo só elas. Vejo também tudo ao redor — e vejo mais de mim. O Cine Aves foi esse espaço de agradecer”, declarou Julice Florise Aristides, que venceu a categoria Amador com um curta de linguagem poética. Seu filme traduz a experiência íntima e sensorial de “escutar o céu”, como ela mesma define.

Para Maristela Benites, diretora do Instituto Mamede, o festival cumpre uma função de ruptura dentro do campo da cultura: “A observação de aves, as passarinhadas, o Vem Passarinho... tudo isso é cultura. E muitas vezes isso ainda não é reconhecido como tal. Nossa luta também é por esse reconhecimento".

Um dos tensionamentos curatoriais mais evidentes do Cine Aves está na divisão entre as categorias “Amador” e “Profissional”, que — nas palavras da jurada Marinete Pinheiro — está cada vez mais desafiadora: “Às vezes a pessoa filma com celular, mas tem um olhar tão potente quanto quem usa drone. Às vezes a pessoa entra no amador e filma com uma articulação cinematográfica incrível. Temos o desafio de compreender melhor essas chamadas categorias".
Para ela, o critério mais importante é: “Como essa imagem se articula com uma escuta sensível do ambiente".

Com o que projetou no telão do auditório lotado do Bioparque, o festival se consolida como um espaço onde saberes científicos, técnicos e sensíveis não apenas disputam espaço — coexistem e se co-constroem. Um exemplo notável foi a escolha do filme sobre o pato-mergulhão, uma das aves mais raras do mundo. Marinete contou que a decisão não foi imediata: “Não era a nossa primeira escolha. Mas a bióloga da curadoria chegou e disse: ‘Esse bicho é raríssimo. Isso é fantástico’. Esse olhar científico equilibrou o nosso julgamento estético".
Esse equilíbrio também se desdobra na dimensão intergeracional do festival. O lançamento do livro Aves no Caminho da Escola, escrito por Cecília Monteiro, de apenas 10 anos, emocionou o público presente e rendeu uma menção da Câmara Municipal, entregue pela vereadora Luiza Ribeiro (PT). “É isso que o festival quer provocar: um novo olhar”, resumiu Maristela.

Se, como afirmou o filósofo maliano Amadou Hampâté Bâ, “em África, quando um velho morre, é como se uma biblioteca tivesse sido queimada”, o Cine Aves propõe impedir que se apaguem também as bibliotecas vivas da natureza. Reencantar o mundo, por meio das aves, é um ato urgente — não para romantizá-lo, mas para reconhecer, na delicadeza das asas, uma estratégia de repensar a vida coletiva. “Celebrar as aves é celebrar a vida. E fazer isso com cinema é dar forma, som e cor a uma transformação que não pode mais esperar”, concluiu Simone Mamede.
Transformar o mundo a partir das aves pode soar poético — e, de fato, é —, mas também é profundamente político. Talvez essa seja a verdadeira vocação do festival: fazer da cultura uma ecologia de resistência.
GANHADORES DA 4ª EDIÇÃO CINE AVES
- Curtas Premiados – Categoria Profissional
“Pato-mergulhão: vida que nasce às margens de um rio”, de Sávio Freire (RJ)
Com sensibilidade e precisão, o curta lança luz sobre uma das aves aquáticas mais ameaçadas do planeta, o raro pato-mergulhão, símbolo do Cerrado brasileiro e verdadeiro embaixador das águas nacionais.
“A capital do Pantanal: Corumbá/MS”, de Gabriel Freitas (MS)
Sem narração, guiado apenas por trilha sonora e imagens exuberantes, o filme presta uma homenagem visual à fauna alada e às paisagens de Corumbá — um dos mais impressionantes refúgios de biodiversidade da América do Sul.
“Olhares sobre o Pantanal pelo céu, água e terra”, de Felipe Mesquita (MS)
Um percurso lírico por diferentes camadas do Pantanal, onde a câmera registra com encantamento espécies como araras, garças, suiriris e jaçanãs, revelando uma coreografia natural entre liberdade e beleza.
- Curtas Premiados – Categoria Amador
“Entre o céu, a terra e junto com os passarinhos”, de Julice Florise Aristides (MS)
Em tom intimista, a diretora constrói um documentário poético sobre transformações pessoais e coletivas. As aves surgem como mediadoras de um novo modo de ver, sentir e habitar o mundo — com mais escuta, presença e delicadeza.
“A paisagem é viva”, de Rita Cássia de Sousa (MG)
Mesclando elementos oníricos e denúncia, a obra percorre os territórios da observação de aves e da luta ambiental. Uma fábula crítica sobre perdas ecológicas e o despertar para a urgência da conservação.
“Percepção, paisagem e avifauna”, de Gabrielly Miranda Duarte (PR)
O curta explora as florestas urbanas de Curitiba como importantes redutos para a avifauna local, promovendo o diálogo entre cidade e natureza, e mostrando como os espaços verdes urbanos são pontes afetivas entre humanos e aves.