“Aqui estou, mais um dia, sob o olhar sanguinário do vigia...” é assim que começa “Diário de um detento”, música do grupo Racionais MC’s, que narra o cotidiano do presídio do Carandiru, em São Paulo, às vésperas – e no dia – do episódio que ficou conhecido como “Massacre do Carandiru”, quando, no dia 02 de outubro de 1992, 111 pessoas privadas de liberdade foram mortas pela polícia durante uma rebelião.
A música, escrita por Mano Brown e Josemir Prado, foi lançada no final de 1997, no álbum "Sobrevivendo no Inferno", que reúne outras canções que denunciam as condições de vida da população das periferias brasileiras e, em razão disto, se tornou um registro sócio-histórico de nosso país. Não por acaso, em 2019, "Sobrevivendo no Inferno" entrou para a lista de obras literárias do vestibular da Unicamp, um dos mais concorridos do país. E em 2023, em Umuarama, a Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) conseguiu que a letra de “Diário de um detento” fosse considerada obra literária para fins de remição de pena.
Tudo começou no “Projeto de roda de leitura para remição de pena por meio de prática social educativa em unidade de privação de liberdade” da Faculdade Alfa Umuarama – UNIALFA, idealizado pelo psicólogo e servidor da DPE-PR Clodoaldo Porto Filho, que também é professor da universidade. A Defensoria Pública em Umuarama é apoiadora do projeto, que também foi desenvolvido pelo psicólogo com jovens em conflito com a lei. Por meio do projeto, pessoas privadas de liberdade participam de rodas de leitura mensais com o objetivo de diminuir o tempo de sua sentença. A chamada “remição de pena” é um direito concedido a essas pessoas, regulamentado pela Resolução 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que garante a quem comprovar a leitura de qualquer obra literária a redução de quatro dias de pena por obra.
A proposta do projeto é ler textos na íntegra, debatê-los e, então, conduzir uma avaliação por meio de produção textual que pode ser feita de diversas formas, através de relatórios, questionários, resenhas e até mesmo discussão oral avaliada pela pedagoga responsável, Laís Bueno Tonin, coordenadora do curso de Pedagogia da UNIALFA.
“Quando fizemos a proposta do projeto, a primeira ação foi identificar que tipo de leitura e interpretação textual essas pessoas poderiam realizar. Logo percebi que eu precisava de uma literatura que me permitisse ganhar a confiança dos envolvidos, para que acreditassem em suas competências para participar do projeto. Afinal, são pessoas que em maioria estão há anos longe de livros e do processo educacional”, explica a pedagoga. Foi assim que surgiu a ideia de trabalhar com diversas produções textuais, que, segundo ela, podem ter um efeito além do que um livro pode oferecer em um contexto de baixa fluência em leitura.
“Quando eles se depararam com a letra de ‘Diário de um detento’, dos Racionais, que condiz com o contexto social em que eles vivem, prontamente se abriram para o diálogo e pensamento crítico-reflexivo, a respeito da vida no sistema carcerário. A educação com foco na ressocialização dos indivíduos precisa ser, antes de tudo, humana, precisa identificar as necessidades e propor um pensamento crítico que os leve a questionamentos a respeito do que os levou a determinadas escolhas e determinadas ações, bem como o preço que se paga e as questões humanas envolvidas no processo de privação da liberdade”.
O psicólogo Clodoaldo Porto Filho também defende que, na hora de escolher obras para apresentar a esse público, seja dada preferência àquelas que retratem a realidade da população carcerária e que dialoguem com as vivências dessas pessoas.
“Acho que, como estratégia de socialização e reflexão, a leitura é uma importante ferramenta. Digo socialização, em vez de ressocialização, pois boa parte das pessoas privadas de liberdade nunca tiveram sua cidadania garantida de forma plena. É fundamental que se dê preferência a obras que causem um processo de identificação e reflexão, e, nesse quesito, as letras de rap, por exemplo, podem cumprir esse papel de forma bastante efetiva”.
A roda de leitura foi realizada em outubro de 2022 e em março deste ano a DPE-PR encaminhou ao Juízo da Vara de Execução em Meio Fechado e Semiaberto de Umuarama um pedido de remição de pena em nome de um dos participantes das rodas de conversa. No documento, o defensor público Pedro Bruzzi requeria a remição de 12 dias pela leitura de três obras: “Pequeno Manual Antirracista”, livro de Djamila Ribeiro, “Carta de Paulo Freire aos Professores”, artigo do educador brasileiro, e a letra da música “Diário de um detento”.
O Ministério Público do Paraná (MPPR) apresentou objeção ao pedido, mas o Juízo concedeu a remição de 12 dias ao homem. Em maio, o MPPR requereu a suspensão da decisão, sob a alegação de que a leitura de um artigo ou da letra de uma música não seria suficiente para fins de concessão de remição de pena. Também questionou a falta de uma resenha ou documento equivalente produzido pelo homem, o que ‘violaria o princípio da igualdade’, já que este seria o procedimento adotado por outras pessoas em privação de liberdade. Para o Ministério Público, a leitura e o debate de uma música e um artigo de poucas folhas não seriam o suficiente para conceder a remição, portanto, após o juízo de 1.° grau conceder o direito, o MPPR recorreu. Nesse momento da história, o homem havia constituído advogado particular, que enfrentou os argumentos do MPPR, reforçando o pedido da DPE-PR para fazer valer o direito de seu cliente aos dias remidos.
A questão chegou até a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), que, neste mês, por unanimidade de votos, negou o recurso do Ministério Público e confirmou os 12 dias de remição de pena. Para o defensor público Cauê Bouzon, que participa do projeto, o trabalho com letras de músicas é uma forma de introduzir a leitura na rotina da pessoa – “o que muito dificilmente aconteceria se fosse exigida a leitura de um livro de Machado de Assis, por exemplo” – e deve ser aceita como remição pela leitura, ideia que agora, segundo ele, está chancelada pelo Tribunal de Justiça.
“É uma decisão paradigmática. A partir deste acórdão do Tribunal de Justiça temos a certeza de que a remição pela leitura é uma realidade no estado do Paraná e de que o estímulo à leitura não está - e nem pode estar - adstrito a nenhum tipo de estereótipo. Literatura é um conceito amplo e como tal deve ser entendido. Se a pessoa privada de liberdade toma gosto pela leitura a partir de letras de músicas, isto é o que deve ser levado em consideração, sendo a decisão do TJPR prova disso. A partir desta decisão a concessão pela remição da leitura nos juízes e juízas de primeiro grau ficará bem mais fácil de ser conseguida”.
Fonte: Defensoria Pública do Estado do Paraná