O maior dramaturgo pesquisador, criador da linguagem tropicalista no teatro, José Celso Martinez Corrêa, conhecido pelo nome artístico Zé Celso, morreu nesta 5ª feira (6.jul.23), aos 86 anos, em São Paulo. Ele estava lutando pela vida há dois dias, internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital das Clínicas, na Capital Paulista.
Como mostramos aqui no TeatrineTV, Zé teve 53% do corpo queimado em um incêndio que ocorreu na madrugada da 3ª feira (4.jul.23), em seu apartamento no bairro Paraíso. Além de Zé, se feriram o marido dele, Marcelo Drummond, o ator Victor Rosa e Ricardo Bittencourt, que também estavam no apartamento.
Zé foi resgatado ao HC e intubado, desde então, o artista, vinha batalhando pela vida. Na 4ª (5.jul), pela manhã, correu a notícia de que o quadro de saúde de Zé havia piorado.
No final da tarde da 4ª feira (5.jul), a médica e atriz Luciana Domschke fez um vídeo dizendo que Zé estava se recuperando bem: “A cada minuto ele está mais perto da vida”, disse Domschke.
Às 9h40 (hora de Brasília) desta 5ª (6.jul.23), entretanto, o perfil do Teatro Oficina Uzyna Uzona postou a seguinte mensagem: “Tudo é tempo e contratempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma forma vitoriosa do tempo”, nossa fênix acaba de partir pra morada do sol, amor de muito amor, sempre! (sic)”.
QUEM FOI ZÉ CELSO
Filho de José Borges Correia e Angela Martinez Carrera, Zé Celso nasceu em Araraquara, no interior de São Paulo.
Ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mas não concluiu. No Centro Acadêmico 11 de Agosto, integrou o grupo de jovens que formou o Teatro Oficina.
Amigo de infância do escritor Ignácio de Loyola Brandão, Zé começou no teatro amador com textos próprios: "Vento Forte para Papagaio Subir", de 1958, e "A Incubadeira", de 1959, ambos dirigidos por Amir Haddad.
O Oficina estreou na sequência “Engrenagem”, em 1960, para homenagear Jean-Paul Sartre que visitava o país. A peça foi traduzida e adaptada juntamente com Augusto Boal.
Em 1961, o Oficina inaugurou sua fase profissional com uma casa de espetáculos alugada na Rua Jaceguai. A empresa, na época, foi composta pelos sócios Renato Borghi, Zé Celso, Ronaldo Daniel (que depois se tornou importante diretor na Inglaterra, como Ronald Daniels), Paulo de Tarso e Jairo Arco e Flexa.
Zé estreou como diretor em “A Vida Impressa em Dólar”, em 1961, de Clifford Odetts. A peça abriu a programação da nova estadia do grupo na casa de espetáculos alugada. No elenco estava Eugênio Kusnet que, por ser conhecedor profundo do Método Stanislavski, colaborou na preparação dos atores. Essa montagem fez com que Zé ganhasse o prêmio de revelação de diretor pela Associação Paulista de Críticos de Teatro.
Depois, o Oficina montou “Todo Anjo é Terrível”, em 1962. Na sequência, encenaram “Pequenos Burgueses”, de Máximo Gorki, que teve enorme repercussão. Essa última rendeu a Zé, todos os prêmios de melhor direção do ano.
De 1959 a 2018, Zé ganhou 22 prêmios, dentre os quais estão os maiores reconhecimentos para um dramaturgo brasileiro. Entre 1960 a 2008 ele dirigiu mais de 40 peças teatrais. De 1972 a 2008 ele atuou em mais de 13 espetáculos do Oficina.
Os maiores trabalhos teatrais de Zé Celso são “As Bacantes”, “Os Sertões”, “O Rei da Vela” e “Roda Viva”.
O MAIOR DO SEU TEMPO
Zé Celso usou o teatro para desafiar a repressão da ditadura militar, pois começou a carreira em meio a violência militar.
Por meio do Teatro Oficina, Zé se tornou o símbolo do teatro brasileiro.
Em o "O Rei da Vela", clássico homônimo do livro de Oswald de Andrade, de 1933, o Oficina satirizou a política e o comportamento subserviente do país em relação ao mundo desenvolvido.
Sob a direção de Zé, os atores Othon Bastos, Etty Fraser e Dina Staf caçoavam dos filmes da Atlântida, as comédias de costume e o tom empolado das óperas. Em "O Rei da Vela", Abelardo, um agiota, enriquece endividando os outros e acaba trapaceado por um sujeito ainda mais sem caráter.
Por meio das críticas incisivas às caretices do século XX, Zé consolidou os alicerces do Oficina, alcançando o cerne do que define a linguagem dramatúrgica do grupo.
Zé usou a antropofagia modernista para levar ao público o teatro tropicalista, subvertendo o clamor da época à cultura estrangeira.
Desse modo, Zé conseguiu contrapor o ‘módus europeizado’ do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, assinalando as potências singulares da arte teatral do Brasil.
Usando os estudos do russo Constantin Stanislavski, Zé desengessou a estrutura textual aplicada na segunda metade do século XX.
O jogo cênico que interessava à Zé Celso envolvia performance e catarse, com uso de múltiplas linguagens.
Sem dúvidas, Zé foi um dos maiores enfrentadores do moralismo conservador hipócrita brasileiro. Com nu unido a escatologia, Zé imprimia de maneira clara o que até hoje o moralismo representa.
Sob o comando de Zé, transgredir tornou-se a poética do Oficina.
Regido por Dioniso, deus grego do teatro, Zé concebeu a encenação como um ritual, encontrando o profano dentro do sagrado. Ancorado na contracultura em voga nos anos 1960, almejava o transe em vez do sublime.
LUTA PELA LIBERDADE
O 2º ato de "O Rei da Vela" é caracterizado pela liberdade sexual. A busca pelo exercício de todas as formas de amor colocou Zé na mira da Ditadura Militar.
Em 1968, Zé estreou no Rio de Janeiro "Roda Viva", uma composição de Chico Buarque. Com Marília Pêra e Antônio Pedro nos papéis principais, a peça criticava a sociedade de consumo no drama de um cantor que decide mudar de nome, manipulado pelos desígnios da indústria cultural. O Ato Institucional nº5 (o AI-5), havia acabado de ser promulgado, e a repressão do regime militar reforçou a perseguição e a censura aos artistas.
Numa apresentação no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, vinte integrantes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, invadiram a sala de espetáculos, agrediram os artistas e destruíram o cenário. Após ser apresentado em Porto Alegre, "Roda Viva" foi censurado definitivamente.
Em 1974, Zé Celso foi preso numa solitária e torturado. Sem condições de trabalho no Brasil, o artista se exilou em Portugal, onde montou "Galileu Galilei", espetáculo inspirado na teoria do dramaturgo alemão Bertold Brecht.
Somente 12 anos mais tarde, em 2010, Zé Celso foi anistiado pelo Estado brasileiro, recebendo uma indenização pífia de R$ 570 mil pelo terror a que foi submetido.