É raro quando a história, a arte e a afetividade se entrelaçam de maneira tão orgânica, a ponto de moldar o imaginário coletivo de um estado inteiro. Em Margarida – Retratos Culturais de MS, a pesquisadora, escritora, musicista, compositora e ativista cultural Lenilde Ramos avisa que não apenas pretende preservar a memória de Margarida Neder, como também oferecer ao leitor uma chave para compreender os alicerces simbólicos da cultura sul-mato-grossense.
O lançamento será em 15 de outubro, no Teatro do Mundo — data que coincide com o centenário de nascimento de Margarida (1925) e os 50 anos da canção Trem do Pantanal.
Na 4ª feira (8.out.25), Lenilde estará às 16h na 1ª Bienal do Livro de Mato Grosso do Sul, no Centro de Convenções Rubens Gil de Camillo, onde contará alguns detalhes do novo livro. — A Bienal está servindo como divulgação e um 'esquenta'. É um espaço que tem mais protocolo e estou seguindo esse figurino. Amanhã vou falar do livro sim, mas o lançamento mesmo será dia 15/10 no Teatro do Mundo, com música, abraços, cerveja e agito — introduziu Lenilde.
Segundo a autora, o livro retorna ao passado para documentar. A história se situa em quando o estado de Mato Grosso do Sul nasceu, em 1977. Naquela época, jornalistas, intelectuais, instituições e rodas universitárias perguntavam: “Qual é nossa identidade cultural?”. Para Lenilde, quase meio século depois, já é possível vislumbrar uma expressão própria, embora sempre misturando linguagens — afinal, a cultura é um processo dinâmico. E é exatamente esse movimento que Lenilde acompanha ao mergulhar na trajetória afetiva e histórica de Margarida, entrelaçada às vivências de Norma Jornada e do compositor Paulo Simões, sobrinho da homenageada e figura central da cultura local.

A história começa no Rio de Janeiro, com a família Simões Corrêa, passa por Maracaju, onde Margarida nasce em 1925, e chega a Campo Grande, onde se casa com Alfredo Neder. Além dos seis filhos biológicos, ela adota oito meninas, entre as quais Norma Jornada e suas cinco irmãs, oferecendo-lhes não apenas educação formal, mas também uma imersão nas artes. A autora conta que Margarida, sempre cheia, era um ponto de encontro para artistas e amigos, incluindo um jovem chamado Almir Sater.


COSMOPOLITISMO E O CHÃO BATIDO
Filha de um leitor de autores franceses e neta de mulheres enraizadas na terra, Margarida cresceu entre dois mundos. Esse hibridismo, como pontua Lenilde, foi decisivo: — Do lado paterno herdou uma visão cosmopolita do mundo e, do lado materno, o amor à terra e às raízes culturais. — Dessa fusão nasceu a força de uma figura que, mesmo à margem das instituições oficiais, se tornou agente estruturante da identidade artística do Mato Grosso do Sul.
O trabalho de Margarida como artista tem origem, segundo Lenilde, no amor: — Margarida tinha um coração do tamanho do mundo. Além dos filhos biológicos, adotou as meninas e com elas começou a montar seus projetos. Primeiro, tornou-se estilista de moda clássica, promovendo desfiles em Campo Grande e São Paulo e criando a grife Eme Ene.

A partir da criação do estado, em 1977, Margarida redireciona sua trajetória, desenvolvendo um trabalho influenciado pela cultura regional. Esse movimento se intensifica após a Comitiva Esperança — viagem icônica do sobrinho Paulo Simões com Almir Sater pelo Pantanal, em 1983 — quando sua estética muda: entram as onças, os tuiuiús, os camalotes. A casa se transforma num espaço de criação e acolhimento. — Criou uma confecção e durante 10 anos reuniu nesse espaço artistas de diversas expressões. Fez tudo no peito e na raça e deixou um legado que precisava ser registrado, — lembra Lenilde.
PEÑA EME ENE

Seguindo sua missão de promoção cultural, Margarida funda a Peña Eme Ene — um casarão na Avenida Afonso Pena, entre a Rui Barbosa e Treze de Maio, em frente à Casa da Cultura. O local torna-se um centro cultural informal, mas altamente efetivo, onde música, teatro, dança, artes visuais, gastronomia e literatura convivem em troca e celebração. Foi ali que Délio e Delinha encontraram jovens poetas, e músicos fronteiriços descobriram o sertão ancestral.

— A Peña resistiu por 10 anos consecutivos e foi essencial para que, onde víamos curtição, se transformasse num pilar de identidade, — avalia Lenilde. — Ela faz falta. — A observação ganha peso diante do cenário atual, marcado pela quase inexistência de espaços físicos de encontro cultural em Campo Grande e pela prevalência das dinâmicas digitais. Para Lenilde, não se trata de saudosismo, mas de um alerta: a cultura não sobrevive apenas da produção, ela precisa de lugar, de corpo, de rito.

SINCRONICIDADE

A coincidência entre o centenário de Margarida e os 50 anos de Trem do Pantanal não passou despercebida à autora. — Chamo essa coincidência de sincronicidade. Uma data fortalece a outra, — explica. Essa combinação mostra que, mesmo sem planejamento, Margarida e Paulo Simões construíram um legado conjunto, em camadas, costurado com a naturalidade dos que vivem a cultura antes de nomeá-la.

O livro, portanto, é mais do que uma homenagem: é um documento que devolve densidade à história e revela a importância da memória afetiva como ferramenta de construção identitária. Margarida não foi apenas tia de Paulo Simões ou anfitriã da Peña — ela é (e continua sendo) o elo entre passado, presente e um futuro que precisa saber de onde veio.
SERVIÇO
Debate com a autora: 8 de outubro, às 16h — Bienal Pantanal (Centro de Convenções Rubens Gil de Camillo).
Lançamento oficial: 15 de outubro, às 19h30 — Estação Cultural Teatro do Mundo, Campo Grande (MS).