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SEMINÁRIO DO CCMS

'Tapa na cara': Pessoas com deficiência cobram acesso efetivo à cultura em MS

Vozes da experiência pessoal e da militância realizaram debate histórico na Capital sul-mato-grossense

Por TERO QUEIROZ • 02/10/2025 • 10:45
Imagem principal Seminário de Cultura Acessível, Cidadania Floresce foi realizado em 30 de setembro na Capital sul-mato-grossense. Foto: Henrique Kawaminami

Mais do que um debate técnico, o seminário “Cultura Acessível, Floresce Cidadania” foi um espaço para um apelo direto: a cultura, para ser de todos, precisa ser acessível na prática. A ação realizada na terça-feira (30.set.25), evidenciou que, para pessoas com deficiência, a participação em movimentos artísticos e o acesso a espaços históricos não é uma questão de vontade, mas de viabilidade.

Taisa durante o Seminário de Cultura Acessível realizado em 30 de setembro em Campo Grande (MS). Foto: Henrique KawaminamiTaisa durante o Seminário de Cultura Acessível realizado em 30 de setembro em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami

Taisa Santos da Silva, de 46 anos, que está se readaptando à vida após a perda da visão, participou de uma discussão sobre o tema pela primeira vez e demonstrou como recursos assistivos são transformadores. “Eu tô reaprendendo a viver novamente com a perda da visão. Tem 7 anos. É a primeira vez que eu venho assim no evento. É, tem que ter áudio descrição sempre, né? Para a gente, para a gente poder participar mais, né? Tem que haver acessibilidade em geral. A Ivone [audiodescritora] foi uma pessoa que fez audiodescrição maravilhosamente para nós, nos deu bastante atenção. Eu fiquei feliz, me senti muito contemplada. Então, os gestores também tem que estar mais à parte, tem que estar presente nas próximas para eles poderem sentir na pele um pouquinho, entender nosso sofrimento", disse, emocionada. 

A paratleta Aires durante o Seminário de Cultura Acessível, realizado em 30 de setembro, em Campo Grande (MS). Foto: Henrique KawaminamiA paratleta Aires durante o Seminário de Cultura Acessível, realizado em 30 de setembro, em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami

Elevando o debate do campo da necessidade para o da legislação, a paratleta Edivanda Diniz Aires, de 59 anos, foi enfática ao questionar por que os espaços culturais permanecem vazios de um público que existe e tem direito de estar ali. “Foi colocado também estatística de da quantidade de pessoas com deficiência que tem. Por que é que essas pessoas com deficiência, seja física, visual, intelectual, por que é que elas não participam dos eventos culturais? [...] E por que essas pessoas com deficiência visual não estão no meio cultural? Porque não tem acessibilidade! Então não é porque as pessoas não querem ir ao teatro, não querem ir ao cinema, não querem ir ao restaurante", avaliou. 

Para a paratleta, essa ausência escancara uma falha fundamental no sistema, pois a acessibilidade é a condição básica. “A falta de acessibilidade significa falta de inclusão. Então não tem como falar que existe inclusão quando não existe acessibilidade. A acessibilidade é uma ponte para a inclusão. Se não houver acessibilidade, não tem como incluir as pessoas", opinou.

(30.set.25)  Edivanda e Taisa durante entrevista no Seminário de Cultura Acessível, em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami(30.set.25) – Edivanda e Taisa durante entrevista no Seminário de Cultura Acessível, em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami

Aires também apontou para a má aplicação dos recursos destinados à causa, que muitas vezes existem no papel, mas não se convertem em ações que atendam à diversidade de deficiências. “Foi colocado aqui de forma muito clara que 10% do orçamento [da Política nacional Aldir Blanc] que vem para a cultura é direcionada para a acessibilidade e inclusão. Só que isso não acontece, né? [...] Porque quando tem uma um teatro que inclui só o cego total congênito, com o braille, por exemplo, você está excluindo todos os outros deficientes, todas as outras deficiência visual, que é o subvisão, que é o cego total adquirido? Não! Da mesma forma que o surdo. Existe uma porcentagem enorme de surdos que não conhece a Libras", protestou. 

Por isso, ela apontou que a luta não é por compaixão, mas por um direito garantido. “Então tem que existir outros tipos, oferecer outros tipos de acessibilidade e volto a falar, o recurso vem. Então, tem que haver e não é uma questão de dignidade, é uma questão de direito. Nós não precisamos ter mais de acrescentar nossa dignidade. Dignidade a gente já tem, a gente está aqui para exigir um direito de acessibilidade e inclusão", completou a atleta. 

O seminário foi idealizado justamente para ser esse canal de diálogo. 

Anderson Lima, presidente da Flor e Espinho, organização responsável pelo Comitê de Cultura de Mato Grosso do Sul (CCMS). Foto: Henrique KawaminamiAnderson Lima, presidente da Flor e Espinho, organização responsável pelo Comitê de Cultura de Mato Grosso do Sul (CCMS). Foto: Henrique Kawaminami

Segundo Anderson Lima, presidente da organização Flor e Espinho, que realiza o Comitê de Cultura de MS (CCMS), o objetivo era ouvir para construir soluções. “Nós estamos aqui para fazer uma escuta, oportunizar um espaço de escuta aquelas pessoas que tem realmente o lugar de fala, para identificar as problemáticas e pensar as soluções junto com o poder público. Pensar nesse novo momento que as políticas públicas estão passando no Brasil", explicou. 

A mensagem foi recebida pela gestão pública. Malu Fernandes, Subsecretária de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência, chamou o evento de um "divisor de águas". “Nunca houve na Secretaria de Cidadania um evento para se falar de cultura e acessibilidade, esse é um tema que ainda não contagiou as pessoas. As pessoas com deficiência ainda se sentem desconfortáveis quando o tema é cultura", anotou. 

Subsecretária de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência, Malu Fernandes. Foto: Henrique KawaminamiSubsecretária de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência, Malu Fernandes. Foto: Henrique Kawaminami

Para a gestora, a solução vai além de verbas ou da própria legislação, passando por uma mudança de mentalidade. “De que vale a cultura se ela não é para todos, não tem sentido. [...] vai além de recurso financeiro, vai além da lei, porque a conscientização e o pertencimento das pessoas com deficiência [...] valem muito mais, tem muito mais valia e amplitude do que a própria lei, do que o próprio recurso", defendeu. 

Fernandes reconheceu que a jornada é longa e que a parceria com a sociedade civil é crucial para reconquistar a confiança da comunidade. “Infelizmente, as pessoas com deficiência não acreditam nas políticas públicas para cultura. Nós vamos ter que conquistá-las e é essa a nossa vontade, o nosso desejo e eu penso que hoje foi apenas o primeiro passo de uma longa caminhada".

Malu Fernandes. Foto: Henrique KawaminamiMalu Fernandes. Foto: Henrique Kawaminami

Um dos maiores desafios práticos discutidos foi a adaptação do patrimônio histórico. João Henrique dos Santos, superintendente do Iphan-MS, afirmou que as falas do seminário foram "um pé na porta e um tapa na cara", um alerta para a urgência do tema. “É indispensável a gente pensar a acessibilidade é nesse momento mesmo, nesse momento que a gente tá construindo um projeto de arquitetura. Lembrar que a obra em si, o que antecede uma obra é o projeto. E a gente, enquanto profissional da arquitetura [...], é no projeto que a gente vai solucionar esses problemas", argumentou. 

João Henrique dos Santos, Superintendente do Iphan no Estado do Mato Grosso do Sul (IPHAN-MS). Foto: Henrique KawaminamiAo microfone: João Henrique dos Santos, Superintendente do Iphan em Mato Grosso do Sul. Foto: Henrique Kawaminami

Uma das representantes do Colegiado Setorial que luta por Políticas Públicas Culturais Inclusivas e de Pertencimento para as Pessoas com Deficiência no MS e presidente da Associação de Mulheres com Deficiência de MS, Mirella Ballatore, denunciou que o próprio espaço onde se realizava o Seminário que debate acessibilidade, não é um espaço acessível. "Pra gente ter acesso à cultura, no meu caso, eu que sou cadeirante, eu preciso ter acesso de verdade. Esse lugar aqui ele não me dá acesso de verdade. O engenheiro, o arquiteto, o pedreiro, a pessoa que inventou essa rampa aqui, ele não sabe o que é acessibilidade. Eu estou aqui em cima porque alguém me ajudou a subir e vai me ajudar a descer. Eu não quero ajuda, nem pra ir ao banheiro. Aqui, o banheiro ele não é acessível realmente. Eu não consigo me olhar no espelho, acredito que uma pessoa com nanismo também não", declarou Mirella. 

Mirella recebeu ajuda para subir a rampa e durante sua fala, ela denunciou por falta de acessibilidade, já que não conseguiu chegar ao palco sozinha devido à inclinação inadequada. Foto: Henrique KawaminamiMirella Ballatore recebeu ajuda para subir a rampa e durante sua fala, ela denunciou por falta de acessibilidade, já que não conseguiu chegar ao palco sozinha devido à inclinação inadequada. Foto: Henrique Kawaminami

Ela explicou que sendo uma pessoa com uma doença rara (Osteogénese Imperfeita - OI; popularmente conhecida como ossos de vidro) não pode se arriscar em ambientes sem acessibilidade. “Eu sou uma pessoa que tem uma doença rara e eu não posso me dar ao luxo de cair e me machucar. Não é o governador, a prefeita, o secretário que vão cuidar de mim. Todos são temporários e nós somos permanentes. Eu cansei de dizer pra arrumarem essa rampa. Se eu precisar de ajuda eu sei que eu vou receber, mas eu não quero ajuda, eu quero acessibilidade", completou. 

Mirella Ballatore durante o Seminário de Cultura Acessível, realizado em Campo Grande em 30 de setembro. Foto: Henrique KawaminamiMirella Ballatore durante o Seminário de Cultura Acessível, realizado em Campo Grande em 30 de setembro. Foto: Henrique Kawaminami

O superintendente do Iphan conclamou outros gestores a adotarem essa visão ampliada, pensando no legado futuro. “Não dá para a gente pensar no patrimônio cultural hoje, que é uma herança material que a gente promove, protege, preserva para gerações futuras, sem que a gente dê condições de acessibilidade para essas gerações futuras também, né?”.

(30.set.25) Diversas autoridades palestraram durante o Seminário. Além das citadas na reportagem, também compuseram o dispositivo: Caroline Garcia coordenadora do Escritório Estadual do MinC em MS; Felipe Sampaio diretor da Comunique Acessibilidade; e Etna Gutierres educadora musical inclusiva. Créditos da galeria: Henrique Kawaminami(30.set.25) Anderson Lima, presidente da Flor e Espinho e Caroline Garcia, coordenadora do Escritório do MinC em MS, durante o Seminário de Cultura Acessível, realizado em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami.(30.set.25) Etna Gutierres, educadora musical inclusiva e terapeuta ocupacional, durante o Seminário de Acessibilidade Cultural, realizado em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami(30.set.25) Caroline Garcia, coordenadora do Escritório do MinC em MS, durante o Seminário de Cultura Acessível, realizado em Campo Grande (MS). Foto: Henrique Kawaminami

O dilema é concreto para planejadores urbanos, como explicou a arquiteta Jacqueline Nascimento, da Planurb, que atua na revisão da legislação da capital. “A gente não pode destruir o patrimônio para tornar o imóvel acessível, mas também tem que tornar o imóvel acessível [...]. Não adianta nada a gente ter um prédio lindo que fica lá isolado porque ninguém consegue entrar porque tem uma grande escadaria, né? Então, a gente tá fazendo parte da legislação para atualizar justamente essa questão", finalizou. 

 


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Tags: Cultura Acessível, Edivanda Diniz Aires, Floresce Cidadania, Taisa Santos da Silva

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