Esteve em cartaz na 6ª.feira (10.fev.23), no Sesc Cultura, em Campo Grande (MS), o monólogo 'A Mulher Que Cuspiu a Maçã', concebido e interpretado pela atriz e bailarina mineira Rosa Antuña. A direção é da italiana Roberta Carreri – atriz do Odin Teatret.
Ocorreram duas sessões: a 1ª, às 17h30, com 50 vagas e a 2ª, às 19h30, com 55 vagas. Ambas lotaram.
A reportagem do TeatrineTV acompanhou a segunda sessão, ocasião em que muitas pessoas não conseguiram chegar a tempo de garantir uma cadeira.
O público estava ansioso para ver o monólogo que é parte da ‘Trilogia do Feminino’, que inclui os espetáculos ‘A Mulher Selvagem (2010)’ e ‘O Vestido (2014)’ – esse último foi apresentado em novembro de 2022 na Capital sul-mato-grossense.
Sobre o ‘Mulher Que Cuspiu a Maçã’, a sinopse adiantava: “Mostra uma mulher que batalha para se reconstruir, tentando superar o abuso que sofreu durante toda a vida, da violência física às pressões psicológicas”. Enquanto aguardava o início da sessão, o público lia também reportagens sobre o espetáculo, na intenção de saber mais sobre o que veria em minutos.
Inicia-se a chamada para entrada no espaço de apresentação. O público notou já no início que Rosa estava de pé no centro da cena. Ela permaneceu em silêncio até que todos se acomodassem. Ao lotar a sala, o silêncio foi quebrado pela trilha.
Rosa começava a dar vida a personagem: uma mulher de calças de couro, espartilho e salto-alto. Ela segurava uma bolsa feminina e passava a disparar frases mescladas a poses sensuais, como alguém que estava sendo observado. Ela lixou as unhas e escovou os dentes. Sequencialmente a todas essas ações cênicas, a personagem executou passos de dança. Isso tudo em minutos. Vidrado, o público parecia saber que havia embarcado numa arrebatadora apresentação, que vasculhou adultos e crianças – que ao final da sessão foram falar com a atriz. “Me senti emocionado!”, disse o pequeno Ângelo, frente a frente com a intérprete.
Outra parte do público, mulheres dançarinas da Capital, comentavam sobre a performance de Antuña dizendo que estavam impactadas, pois não esperavam tanta teatralidade, visto que Antuña é conhecida por sua atuação na dança. “Sou reconhecida como bailarina e coreógrafa, mas eu sou uma artista. Eu trabalho na interface do Teatro, do Butô, da Performance, das Artes Visuais, da Dança, do Circo, do Clown, de tudo isso. Eu estudo Artes Plásticas, vou formar esse ano inclusive”, explicou a criadora.
O jornalista do TeatrineTV tinha muitas perguntas programadas que acabaram por perder o sentido, diante de uma sessão tão esclarecedora. Ouvir a atriz conversar com o público era mais conveniente e proveitoso. Antuña explicava sobre quando e como encontrou-se com a diretora italiana, para desenvolver ‘A Mulher Que Cuspiu A Maçã’. “Dos três espetáculos da trilogia, os dois primeiros eu dirigi e fiz tudo. Para o terceiro, eu queria que alguém me dirigisse, mas eu sou insuportável. Então, foi difícil escolher alguém. Aí quando eu fui fazer o Odin Week [na Dinamarca], que são dez dias de imersão lá, eu tive uma identificação brutal com a Roberta – ela é até canceriana também. Aí fiquei 10 dias tentando criar coragem de chegar perto dela. Eu chegava, começava a chorar! Eu via os espetáculos dela e eu chorava dando vexame, assistindo Roberta. Aí no último dia eu falei: Roberta, será que talvez, você poderia dirigir meu último solo? Falei e sai correndo! Aí fiquei 3 meses negociando. Então esse, dos três, acho que é o que mais foi para o universo do teatro físico. E o Odin, como vocês sabem, é um teatro totalmente corporal, por isso que tem muito a ver com dança”, explicou.
Para a atriz, um dos maiores ganhos para seu espetáculo, ao fazê-lo com a direção de Roberta, foi aprender a como usar de formas inimagináveis os objetos cênicos. “Eles são mestres em usar objetos. Se transforma em tudo. Ela com esse tecido, ela quem me deu o tecido, era lá do Odin. Aí eram 8h da noite, no final do ensaio, a Roberta virou e falou: para amanhã de manhã, quero 30 ações com esse tecido. Fiquei até 2h da manhã, chorei, invoquei Kazuo, sabe aquelas confusões?”, lembrou. Na sequência, Antuña se despediu das mulheres da plateia, destinando sua atenção à reportagem do TetarineTV.
Perguntada sobre em que local nasceram suas inspirações para os monólogos da trilogia, Antuña disse que tudo surgiu de incômodos ainda quando criança. “Sempre escrevi muito, desde pequenininha. Outro dia achei uma coisa que eu escrevi quando era bem novinha que dizia assim: ‘como é difícil ser mulher, a gente tem que aprender a ser!’. Eu era feminista e não sabia, desde criança. Eu sempre me sentia mal, incomodada. Meu pai é maravilhoso, um fofo, mas é dentro de uma estrutura machista, esquerdo-macho clássico. Ele está até melhor agora! Imagina, eu tenho 45 anos, é uma outra geração a dos meus pais, meu pai tem 77... Então, assim, professor do colégio, homens da família, eu brigava com eles e pagava de louca. Eu tinha muitos conflitos e escrevia muito, porque eu não era ouvida. Na minha época, nenhuma criança era ouvida, nem menina, nem menino. Criança não existia na minha geração”, considerou.
Clássicos da literatura despertaram na atriz o desejo de denunciar as angústias femininas por meio da cena. “Quando peguei o [livro] Mulheres que Correm Com Lobos, de Clarissa Pinkola, foi que veio uma voz e falou assim: ‘faz um solo chamado Mulher Selvagem’. E foi muito difícil fazer esse primeiro, fiquei com muito medo, muita insegurança, mas consegui fazer. Aí depois dele foi um alívio, eu senti uma catarse muito grande, muito inconsciente! Aí, começou a vontade de fazer outro quando vi um vestido na vitrine e o comprei, mas não tinha como o usar, porque era muito chique. Então, eu pensei: ‘gente, vou ter que fazer um solo para esse vestido”. Aí entrei no universo da Alice [no País das Maravilhas]. O vestido conversava comigo. Doida! Assim, mas sabe quando você sente que você come e fala ainda estou com fome? Ainda estou com sede... Será uma limonada? Eu ainda estava com a sensação de que faltava alguma coisa. Aí caiu na minha mão o livro da Regina Navarro Lins, ‘A Cama na Varanda’. Quando eu comecei a ler o livro, que ela fala de Eva, do Mito. Fala que mulheres não podiam andar sobre plantações porque se caísse menstruação iria apodrecer as sementes e o solo. Olha que doido! É bem ao contrário, né? E aí veio de novo a voz e falou assim: ‘A Mulher que Cuspiu a Maçã’. Aí eu falei que iria fazer um solo com esse título. Então, esse partiu do título provocado pelo livro da Regina, mas queria que esse fosse além, por isso busquei esse encontro com a Roberta, para não ficar no mesmo local dos outros dois”, detalhou.
'A Mulher Que Cuspiu a Maçã' estreou em 2015 em Belo Horizonte. Depois, Antuña ficou 3 anos sem montar nenhum dos monólogos. Em 2018 a chamaram para dançar a trilogia. “Aí, quando eu fui revisitar ‘Mulher Selvagem’ e ‘O Vestido’, que eu os passei (ensaiei) inteiros, depois de anos, chorei muito, porque aí que eu entendi o que eu havia feito. Aí que eu entendi que eu estava falando realmente de abuso, porque eu estava indo muito pelo livro, ou frases que vinham na minha cabeça, textos poéticos, músicas que me arrepiavam e eu começava a chorar, mas eu não estava com consciência, porque eu estava chorando ou porque eu estava arrepiando. Anos depois, eu revi e notei: Gente, eu estava falando de abuso, de silenciamento, que eu sofri como todas as mulheres. E eu sou até privilegiada. Imagina, mulheres de outra classe social, mulheres pretas em outras condições. A Mulher Selvagem fala do começo ao fim de abuso: uma mulher perdida, precisando falar, tratada por louca”, contou.
Em seus trabalhos, Antuña disse que há muita coisa de outras mulheres, pois trata-se de seu método de intensa observação. “Eu observo muito, tudo, todos os trejeitos. Tem outras mulheres nos textos, sim. Elas estão ali a partir do meu olhar. Nesse último monólogo eu busquei representar as mulheres do mundo. A partir dessa mulher que vai se transformando em várias outras mulheres, até com a questão da burca”, completou.
A capacidade de tornar o espetáculo amplo no quesito território, para Antuña se deve a natureza do trabalho de Eugenio Barba, diretor italiano fundador da escola em que a diretora do espetáculo é atriz. “O Eugênio Barba, o teatro dele é antropológico, né? O teatro que ele faz traz a América Latina, traz Japão, traz várias culturas diferentes nas coisas. É um teatro do mundo, na verdade”, observou.
Essa é a 2ª vez que a atriz apresenta um trabalho por meio de iniciativa da Cia do Mato com apoio do Sesc Cultura. Ela disse ao TetarineTV que dessa vez sentiu uma busca mais intensa do público e que há algo especial naqueles que consomem cultura não blockbuster em Campo Grande. “A recepção aqui é muito maravilhosa, dessa vez foi mais intensa do que foi com ‘O Vestido’, achei que teve mais gente do que quando vim com O Vestido em novembro [de 2022]. As pessoas são muito sensíveis, sabe? Os artistas que têm aqui são muito sensíveis, com muita referência, com muito embasamento. Eu as sinto abertas”, finalizou.
'A Mulher Que Cuspiu a Maçã foi apresentada' no Odin Teatret (Holstebro, Dinamarca), Natal (RN) e em Belo Horizonte(MG). Circulou através do Prêmio Cena Música, Ocupação Funarte, Mova-se e Parceiros em Cena, projeto Terça da Dança e BH in Solos.
A CIA DO MATO
A 1ª vez que Antunã veio apresentar na Capital sul-mato-grossense foi em novembro de 2022, trazida pelo projeto “Alvitre-o”, da Cia do Mato, que havia sido contemplado pelo Fundo Municipal de Incentivo a Cultura de Campo Grande (FMIC) de 2021. Naquela vez, a atriz mineira apresentou ao público o monólogo “O Vestido", além disso, desde então, passou a coreografar um espetáculo da Cia do Mato.
CORREÇÃO! [às 18h08 de 12/02/2023]: Em ambas as vezes que Rosa apresentou em Mato Grosso do Sul, foi por meio de iniciativa do Grupo de Dança Cia do Mato em parceria com o Sesc Cultura.